A flecha do tempo
Edelcio G. De Souza
Com o estabelecimento dos novos paradigmas da física deste século, principalmente com o advento da teoria da relatividade geral e da mecânica quântica, foram colocadas em xeque várias categorias filosóficas tais como o determinismo, a causalidade, a objetividade, apenas para citar algumas delas. Além disso, as concepções kantianas de espaço e de tempo foram completamente modificadas, dando lugar ao conceito unificado de espaço-tempo, fruto da teoria da relatividade restrita elaborada por Einstein em 1905.
É exatamente sobre o conceito de espaço-tempo que Stephen Hawking e Roger Penrose procuram empreender um debate neste livro. A discussão gira em torno das discordâncias entre esses dois cientistas acerca da natureza do espaço-tempo e de outras questões mais específicas tais como a "flecha do tempo", "as condições iniciais no nascimento do universo" e "a maneira como os buracos negros consomem informação". Percebe-se, no entanto, que se trata aqui não apenas de uma discussão sobre conceitos e entidades da física contemporânea, mas sim de um debate acerca de posicionamentos filosóficos muito diferentes e que exercem influência fundamental no tipo de investigação que procuram realizar.
O texto é composto por seis conferências proferidas em 1994 no Instituto de Ciências Matemáticas Isaac Newton da Universidade de Cambridge, seguido de um debate entre eles. Embora o conteúdo do texto não seja fácil, é possível, no decorrer dos temas discutidos, separar claramente suas posições e críticas.
As três primeiras conferências, duas de Hawking e uma de Penrose, versam principalmente sobre o tema dos buracos negros. Hawking, após apresentar-se como um positivista no sentido de que uma "teoria física é apenas um modelo matemático e que não tem sentido perguntar se ela corresponde à realidade", passa a expor os principais resultados sobre a estrutura global do espaço-tempo, aplicando as técnicas dos teoremas de singularidade aos buracos negros. Talvez a conclusão mais interessante dessa discussão seja o surpreendente resultado acerca da perda de informação nos buracos negros, o que significa que "a gravitação introduz um novo nível de imprevisibilidade na física para além da incerteza usualmente associada à teoria quântica".
A partir do capítulo quarto o tema volta-se para o significado da teoria quântica, com uma breve exposição do paradoxo do gato de Schrõdinger e o problema da medida. Penrose discute a teoria da dupla evolução dos sistemas quânticos: uma de natureza determinista representada pela equação de Schrõdinger e outra de natureza indeterminista representada, por sua vez, pela redução do vetor de estado. Penrose mostra-se cético em relação à solução do problema da medida via redução da função de onda; para ele, "a resposta para o problema da medida não se encontra aqui". O importante nessa discussão é o conceito de realidade quântica que, no caso do gato, o estado de superposição do gato vivo com o gato morto não pode corresponder a nenhum tipo de realidade. Visto que Hawking se posiciona como um instrumentalista, tal problema não tem nenhum sentido para ele.
Os dois últimos capítulos versam sobre cosmologia quântica (Hawking) e a aplicação da teoria dos "twistors" ao espaço-tempo (Penrose). Aqui são discutidos problemas relativos à termodinâmica (seta do tempo) e, principalmente, a questão das condições iniciais do universo com a "proposta de ausência de fronteira" de Hartle e Hawking.
O capítulo final é constituído pelo debate propriamente dito no qual suas respectivas posições acerca dos assuntos ventilados no texto são claramente definidas. Nas palavras do próprio Penrose: "No início deste debate Stephen disse que ele pensa ser um positivista, e eu um platonista. Mas o ponto essencial aqui é que eu sou um realista. Também, se compararmos este debate ao famoso debate entre Bohr e Einstein, 70 anos atrás, Stephen desempenha o papel de Bohr e eu desempenho o de Einstein. Einstein argumentava que deve existir algo como o mundo real, não necessariamente representado por uma função de onda, ao passo que Bohr dizia que a função de onda não descreve um micromundo "real', mas somente um "conhecimento' útil para fazer previsões".
Parece-me um tanto quanto presunçoso comparar o debate do presente livro com aquele de Bohr e Einstein. Naquele momento tratava-se de discutir as consequências de um paradigma emergente que nortearia toda a pesquisa a ser empreendida no futuro. No entanto, o debate que o texto nos oferece é fruto da dificuldade de solucionar os quebra-cabeças que esses próprios paradigmas nos impõem e que indicam a aproximação de um período de crise muito bem-vindo para as próximas gerações.
Edelcio Gonçalves de Souza é professor de lógica e filosofia da ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Folha de São Paulo
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