MC: Remete para duas ideias complementares. A primeira procura desmistificar um certo discurso sobre a «tradição académica», que ainda hoje persiste em Coimbra, e que entende a praxe como uma espécie de património ancestral, mais ou menos perene e incontestado, o que não é inteiramente verdade. Houve uma contestação da tradição que ocorreu durante toda a década de sessenta e que resultou na recusa de rituais, práticas e simbologias tidas como arcaicas. E esse não foi um processo inédito: de maneira distinta, nos finais do século XIX e inícios do século XX, estudantes identificados com o ideário republicano tinham-no já feito, o que levou, aliás, ao desaparecimento da praxe entre 1910 e 1919. Curiosamente, hoje é esse pedaço da história que anda desaparecido…
A segunda ideia relaciona-se com esta e diz respeito ao objecto central do livro: o estudo do processo de politização da juventude estudantil entre meados da década de cinquenta e o 25 de Abril. É a este percurso - variado e com algumas descontinuidades - que eu chamo de tradição da contestação. Ele é feito de profundas mudanças ao nível da contestação política mas também no campo das sociabilidades académicas. Algumas dessas mudanças são ainda hoje visíveis nas Repúblicas ou no próprio entendimento da Academia como «espaço de reivindicação».
AN: Ainda é possível dizer coisas novas sobre as «crises estudantis em Coimbra no antigo regime»?
MC: Julgo que sim. Parece-me que esta obra, bem como os diferentes trabalhos efectuados por Rui Bebiano - desde O Poder da Imaginação, até à recuperação de memórias dos activistas (com Maria Manuela Cruzeiro) ou o recente livro de articulação com o presente (com Elísio Estanque) - demonstram o interesse em se analisar os movimentos estudantis sob um prisma não simplesmente político, mas também social, moral e cultural.
De qualquer modo, o meio estudantil coimbrão é aquele que se encontra melhor estudado. Sobre o Porto, por exemplo, existe uma nebulosa quase total. Mas mesmo sobre Coimbra, faria falta um trabalho sobre o meio estudantil no contexto da 2ª guerra mundial ou sobre os posicionamentos sócio-políticos do corpo docente. Existe um livro de Luís Reis Torgal sobre o assunto, mas que se concentra no período entre 1926 e 1961. Seria interessante uma abordagem que fosse dessa data até ao 25 de Abril de 1974. E que colocasse em diálogo a composição, as práticas e as convicções do corpo docente e do corpo discente.
AN: No seu livro propõe que se considere a especificidade do período pós-69, mais propriamente o que coincide com o consulado de Marcelo Caetano. Mas tem noção que não é possível substituir, na economia simbólica das «crises estudantis em Coimbra» e mesmo na memória das gerações que as viveram, a centralidade mítica de 69 pelo período que se segue até 74, ou não?
MC: Não existe, naturalmente, uma intenção de substituir a centralidade de 69 por uma outra, colocada entre 70 e 74. Até porque isso seria conferir um poder à história que ela não detém. Mas procurei, sem dúvida, chamar a atenção para tempos menos conhecidos, menos celebrados, e que, não tendo tido a «dimensão de massas» da «crise de 69», foram inovadores em diferentes níveis: na recusa de um tradicionalismo ainda utilizado durante a “crise”, na politização da cultura ou na introdução de uma retórica anticolonial, que em 1969, por exemplo, nunca aparece explicitada. Para se fazer a história do processo revolucionário de 1974-1976, bem como, em certa medida, a (pré-) história das elites emergentes anos depois na política, na cultura, no jornalismo, etc., tem de se ter em conta aquele período.
AN: A sua área de trabalho é a «história contemporânea». Como sabe, há ainda muito quem considere a expressão duvidosa, para não a dizer uma contradição nos termos. Como vê essas posições?
MC: A desconfiança coloca-se mais ao nível da chamada História do Tempo Presente, que se baseia numa relação de coetaneidade entre o historiador e o objecto de investigação. Tem-se a ideia de que essa proximidade é perniciosa. No meu caso, isso nem se põe: directamente, não vivi o Estado Novo, como não vivi a implantação da República ou a matança de judeus em Lisboa no início do século XVI.
O que na realidade se pretende sugerir é que nos casos em que o passado está demasiado presente, a objectividade fica deturpada. O que é uma noção ainda devedora do positivismo e algo ilusória do ofício. A escrita historiográfica é sempre feita por um sujeito situado no tempo e no espaço, com um conjunto nunca infinito de fontes, seleccionadas por um olhar pessoal e visando uma coerência interna. O produto desse trabalho apenas participa da Verdade na medida em que está aberto ao confronto crítico. É certo que se podem colocar alguns entraves ao nível do acesso aos arquivos, ou algum melindre por se estar a falar de pessoas que ainda podem estar vivas. Mas isso leva-nos, mais do que a um limite, a uma potencialidade associada à história (muito) contemporânea: a oportunidade de recurso à memória vivida. A História Oral é, aliás, um dos eixos da tese de doutoramento que estou agora a realizar.
AN: O seu trabalho actual, sobre a constituição da extrema-esquerda em Portugal, é uma sequência natural de A Tradição da Contestação? Ou seja, foi na universidade que nasceu a extrema-esquerda e foi esse o seu nicho ecológico preferencial?
MC: A primeira organização portuguesa de extrema-esquerda é a FAP/CMLP, que aparece em 1964, resultado de uma cisão no interior do PCP, no contexto do conflito sino-soviético. Estritamente, o grupo não nasceu no seio estudantil, ainda que tenha recolhido simpatias de sectores mais politizados, em regra jovens ligados ao PCP e que se vão afastando deste partido por não concordarem com a linha de integrar o exército e ir para a frente de combate fazer trabalho político.
Mas a FAP/CMLP sofreu uma forte repressão entre 1965 e 1966, o que fez com que a organização - e sobretudo os textos do seu ideólogo, Francisco Martins Rodrigues - permanecesse mais como inspiração do que como suporte organizacional dos múltiplos grupos de matriz maoísta que emergiram nos anos seguintes. Pequenos e por vezes inorgânicos grupos de matriz trotskista ou socialista radical também apareceram nessa curva da década de sessenta para a década de setenta. E foi efectivamente no meio estudantil que se deu esse florescimento. No final do Estado Novo, o PCP, que era tradicionalmente a força dominante nos meios estudantis até meados da década de sessenta, repartia e por vezes era suplantado por estruturas como os Núcleos Sindicais, ligados à OCMLP, no Porto e em Coimbra, o MRPP, em Lisboa, ou a UEC(m-l), em Lisboa e no Porto. Foi este fragmentado activismo de extrema-esquerda que colocou o anticolonialismo no topo da agenda estudantil.
AN: Hoje em dia, tem-se a sensação de que tanto os princípios que orientavam os estudantes nos seus protestos nos anos 60 (e passam 40 anos sobre o Maio parisiense) como a própria ideia de extrema-esquerda se tornaram obsoletos. Os estudantes de hoje lutam contra os princípios de Maio de 68 - na medida em que lutam por escolas «articuladas» com as empresas, cursos práticos e orientados para o emprego, etc. - e a extrema-esquerda só sobrevive em recodificações como as do Bloco de Esquerda, em que o político, lato sensu, se tornou o cultural: aborto, casamento homossexual, etc. Trabalhar sobre a extrema-esquerda é hoje fazer «arqueologia do presente», para falar à Foucault?
MC: Referiu a caducidade do Maio de 68, atestada pela ausência desses princípios no ideário reivindicativo estudantil de hoje, o que é inteiramente verdade. Mas também é verdade, a outro nível, a sua presença praticamente consensual em diversos domínios da sociedade. Algumas questões relacionadas com o direito das minorais, o feminismo, a ecologia, o recuo de uma moral conservadora, etc., devê-las a esse «espaço 68». Na semana passada, num artigo no Público, Pacheco Pereira dizia que era paradoxal a condenação do Maio de 68 efectuada por Nicolas Sarkozy na última campanha presidencial francesa, já que sem aquele momento nunca teria sido visto como admissível um presidente casar com uma cantora pop que se tinha mostrado nua em revistas. Queiramos ou não, hoje somos todos um pouco filhos desse passado.
Talvez seja importante também não amalgamar completamente aquele «espaço 68» à extrema-esquerda daqueles anos. Na verdade, alguns sectores mais ortodoxos viram a emergência daquelas temáticas que mencionei com desconfiança, por acharem que se estava a descentrar indevidamente a militância da questão fundamental da luta de classes. É, aliás, esse aspecto mais rigidamente marxista-leninista que hoje aparece como obsoleto, até porque desapareceu o mundo bipolarizado da Guerra-Fria, bem como a sedução pela China, por Cuba e pelos independentismos africanos e asiáticos e o próprio modelo de organização ferreamente disciplinada mostrou-se pouco operativo e asfixiante.
Mas o radicalismo daqueles anos teve uma outra dimensão, que em Portugal foi, aliás, minoritária. Ela consistiu naquilo que Julie Stephens, uma historiadora australiana dos anos sessenta, chamou de “protesto antidisciplinar”, isto é, a capacidade de invenção de uma nova linguagem de protesto. Ela consistia numa recusa da “disciplina do político” e das correlativas noções de organização, hierarquia e liderança. Esta nova dinâmica de contestação levou a transgredir distinções rígidas como a efectuada entre radicalismo político e radicalismo cultural. A acção dos Provos, na Holanda, dos situacionistas, em França, ou dos Diggers, nos EUA, foram exemplos mais visíveis disso. A cólera e a festa, o colectivo e o individual, a política e a cultura, eram dois lados da mesma moeda. Em certa medida, a esquerda radical pós-moderna inscreve-se na linha de continuidade deste filão.
http://angnovus.wordpress.com/
A TRADIÇÃO DA CONTESTAÇÃO
Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo
Miguel Cardina
Sobre o livro
Decorridas mais de três décadas sobre a queda do Estado Novo, as lutas estudantis travadas contra o regime de Salazar e Marcelo Caetano continuam a dispor de um lugar relevante na memória colectiva. Partindo do caso concreto de Coimbra, A Tradição da Contestação aborda a dissidência política e cultural que atravessa as universidades entre 1956 e 1974, focalizando a análise no período marcelista. Durante estes anos, um vasto processo de politização acentua-se nas práticas e nos discursos estudantis, contribuindo de forma decisiva para a quebra de legitimidade que a ditadura experimenta no seu troço final.
«Miguel Cardina observa um período do movimento estudantil que tem permanecido encoberto pela memória mais divulgada da 'crise académica' de 1969. E fá-lo num trabalho pioneiro, com uma atenção e um rigor absolutamente exemplares».
Rui Bebiano
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Ciências Humanas e Sociais