TUDO E NADA - PEQUENA ANTOLOGIA DOS PAPÉIS DE UM RECÉM-CHEGADO
Ciências Humanas e Sociais

TUDO E NADA - PEQUENA ANTOLOGIA DOS PAPÉIS DE UM RECÉM-CHEGADO


Sócrates argentino
13/Jun/98
Leda Tenório Da Motta

LITERATURA; MACEDONIO FERNÁNDEZ;
Versos sentimentais, histórias de "compadritos" (1), imaginário de letra de tango: eis Evaristo Carriego. Escritor de alma popular crioula e de influência incontestável sobre o lado "fervor de Buenos Aires" de Borges. Mas este é, na verdade, apenas um dos céus de que Borges cai.
Mais insuspeito, mais secreto, mais decisivo talvez, pois dele sai, na direção contrária, a veia irrealizante e paradoxal, a dupla inclinação pelo metafísico e o dubitativo que resume Borges, é o lado Macedonio Fernández, bem menos conhecido. Ao contrário do que acontece com o iniciador nos mistérios do perigoso e real, violento e portenho, concreto e romanceável bairro de Palermo.
É nesse mesmo bairro, mas ao abrigo do exterior, por detrás das grades em ponta de lança de um jardim de residência burguesa, e de dentro de uma biblioteca, que Borges passa toda a sua infância. O que não o impede de só vir a poder fazer o reconhecimento do terreno já adulto, com 20 anos, na volta da Europa. Quando Carriego, amigo e conterrâneo do pai, frequenta os Borges, disseminando as lições de rua que fazem a novidade de sua arte: brigas de faca nas esquinas dos cortiços, onde a valentia pede a arma branca, vinganças, amores, retratos do heroísmo urbano, enfim, que certamente não cairão no vazio.
Tanto mais que o desconhecido rapaz recém-chegado, aprendiz de escritor vertiginoso, vem de círculos modernistas de Madri. Achando-se, portanto, ao chegar em casa, diante do nunca visto.
As visitas coincidem, porém, com as de um segundo habitué, também colega do pai, que é Macedonio, o "Sócrates argentino". Emissário de uma outra literatura, cultor dos humoristas ingleses, conhecedor de Berkeley, Schopenhauer e William James, que vem, por seu turno, dar aulas de idealismo absoluto. Propondo, com o senso do derrisório e os golpes de chistes que a coisa não poderia deixar de exigir, a improbabilidade de tudo, o caráter fabuloso do mundo, a possível ficção de nossa própria existência.
Fadadas a originar o mundo mesmo de Borges, tais lições tornam-se agora, em parte, acessíveis em português, graças à iniciativa de uma rara especialista no assunto. Acrescida de um depoimento de Borges, tomado por ela, em Paris, em 1979, a seleta encerra uma bem feita apresentação, que cuida de informações sobre a obra, em tensão com a recusa socrática em escrever, a biografia, em boa medida ainda por ser estabelecida, e as relações com Borges.
Tudo isso preparando uma sequência atordoante de textos que comportam teorias, inclusive humorísticas, notas críticas as mais esparsas, auto-retratos, necessariamente contorcidos, uma correspondência ativa e passiva, inclusive com Borges, e poemas, alguns em torno da mulher morta, outros francamente em prosa, provocadora e feita para surtir os efeitos de estranhamento que não poderiam deixar de ser fatais para os 20 anos de Borges.
"A partir de 1921, sua grande festa dos sábados seria assistir, no café La Perla, na Plaza Onze, à tertúlia de Macedonio", já havia notado, a respeito da força do impacto, o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal (2), a quem não escapam as duas filiações de Borges. Segundo ele, o jovem Jorge Luis seria o resultado perfeito de ambas as tendências: "Carriego e Macedonio se fundirão num texto que Borges escreve em 1928 e se intitula 'Sentir-se à Morte'. Ali, o subúrbio e Berkeley se dão harmoniosamente as mãos para produzir uma narrativa que já é tipicamente borgesiana."
Nesta intriga "palimpsestuosa" (para usar a expressão de Gérard Genette), o concerto providencial das fontes, embora tentador, e em que pese a costumeira fineza de Monegal, não parece, contudo, proceder. Principalmente à luz do "Prólogo a uma Edição das Poesias Completas de Evaristo Carriego", inserido, a título de capítulo décimo, no volume que leva o nome do poeta, e precede "Discusión" na edição Emecé de 1974 das "Obras Completas". Onde encontramos, de saída, estas reflexões, elas sim, típicas de Borges, e de inegáveis ressonâncias macedonianas: "Todos, agora, vemos Evaristo Carriego em função do subúrbio, e tendemos a esquecer que Carriego (...) é uma personagem de Carriego, assim como o subúrbio em que pensamos é uma projeção e quase uma ilusão de sua obra".
Escrito em 1969, veja-se ainda o prólogo a "Fervor de Buenos Aires". Se é bem verdade que, apresentando essa produção de 1923, a quase 50 anos de distância dela, Borges afirma ter querido "cantar Buenos Aires", o fato é que, entre os seus outros confessados fins, logo depois de nos dizer, no estilo sobressaltante de Macedonio, que se propôs ser "um escritor espanhol do século 17", ele faz observar que "quis ser Macedonio Fernández". E note-se que não se fala, aí, de Carriego, ao passo que se fala de Unamuno e de Lugones.
Borges quis ser Macedonio Fernández! E não se pode negar que conseguiu. De tal modo que, se lhe ocorre dizer, com a mesma desprendida cortesia que atribui a Macedonio, que o transcreveu e plagiou, ao mesmo Macedonio ocorre replicar que seu talento nada mais é que uma usurpação da obra de Borges, o resultado de uma confusão com ela (3). E estamos assim bem adiantados: diante de disfarces e espelhos, a um passo da refutação do tempo e do espaço, e com isso da possibilidade da autoria, senão em pleno "poema universal" (para evocar Shelley), que não pode ser original porque não existe origem.
Frequentador das tertúlias animadas pelo orador fascinante, Borges é, de alguma forma -como sugere, entre outros, Monegal- o seu Platão. Vale dizer, o que assina em seu lugar. Até porque passa ao largo do que escreve o mestre, para melhor fixar-se no encantatório da fala, a que se devota, a ponto de admitir, em 1979: "'Fui um dos doze apóstolos".
Tal devoção explica, por outro lado, certa rejeição ulterior, aliás prevista por Harold Bloom nos angustiosos passos da administração da influência. Significativamente, Macedonio é afastado junto com os velhos tigres e labirintos. Dos espelhos, tematizados à exaustão, já sabíamos que Borges sempre desconfiou, porque eles nada mais fazem senão revelar que o homem é reflexo e vaidade. Quanto ao labiríntico Macedonio, não se iluda o leitor: esse é apenas o avesso do fascínio. Ou uma batida em retirada provisória, a pôr na conta de um cansaço poético que aconselha, no avançado dos anos 70, um irônico despojamento de si.
Trair Macedonio seria como trair a si mesmo. Pois, ainda que a biblioteca de referência de Borges, como o "Aleph" que tudo contém, abarque a totalidade -Unamuno, Cansinos-Asséns, Carriego, Lugones, Cervantes, Quevedo, para só ficarmos no espanhol-, ainda assim a própria idéia de totalidade leva sempre de volta a Macedonio. Uma vez que a infinitude circular dessa especulação é justamente uma lição... de Macedonio.

Notas:
1. Valentes gaúchos na cidade, que se envolvem ali em brigas e bravatas;
2. Ver "Borges por Borges", Porto Alegre, LPM, 1987. Essa é a versão brasileira, por sinal péssima, de um livro antes publicado em francês, em 1970, pela Seuil;
3. Citado por Sueli Barros Cassal, que refere Cesar Fernandez Moreno, "La Realidad y los Papeles", Madri, Aguilar, 1967, pág. 13.

Leda Tenório da Motta é professora na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora de "Catedral em Obras" (Iluminuras).

Folha de São Paulo



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