Para assentados em Iaras (SP), ganhar um lote de terra é apenas o primeiro passo para uma reforma agrária justa. Falta apoio técnico para viabilizar a agricultura familiar. Fotos: Ricardo Carvalho
Pouco antes das cinco da manhã, na casa de Romildo Pereira (ao lado), conhecido como Lega, o café já ferve no fogão. Aos 53 anos, ele passou 11 acampado sob as lonas do MST, até que, em 2008, conseguiu ser assentado em um lote de seis alqueires em Iaras, no interior de São Paulo. Muitos acreditam que as dificuldades de um sem-terra terminam quando ele conquista um pedaço de chão. Não é bem assim.
Mesmo dois anos e meio após ser assentado, Lega ainda vive em um barraco. As paredes são revestidas de lona e o chão é de terra batida, o que deixa o ambiente extremamente frio nas madrugadas julinas no interior paulista. Encolhido numa jaqueta preta, ele ironiza: “é melhor do que o calor que faz no verão”. De acordo com ele, não houve liberação por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do auxílio habitação, 15 mil reais entregues ao assentado para a construção de uma casa de alvenaria. Além desse auxílio, o projeto de assentamento do instituto prevê um apoio inicial de 3,2 mil reais, duas parcelas de fomento de 6,4 mil reais, além do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que soma 20 mil reais. Desse montante, “não vi nada”, lamenta Lega.
Antes de engrossar as filas do movimento, ele era operador de máquinas em Presidente Prudente, também em São Paulo. Ao longo de sua trajetória nos acampamentos, frequentou as chamadas escolas de formação, responsáveis por ministrar teoria política aos militantes. Hoje é coordenador da frente de massa, que articula as ações dos acampados e assentados da regional de Iaras.
Leia aqui a entrevista com o líder do MST João Pedro Stedilehttp://www.cartacapital.com.br/politica/o-mst-muda-o-focoAssim como grande parte das famílias do movimento na cidade, Lega acampou por quase uma década no Pontal do Paranapanema. Em 2006, veio a Iaras porque na região era mais provável ocorrerem assentamentos, devido ao fato de as disputas ocorrerem por terras públicas ocupadas por empresas que comercializam o eucalipto. As propriedades já estão destinadas para a reforma agrária e junto a Lega vieram cerca de 150 famílias. “Só que, mesmo aqui, existem 40 mil hectares de terras públicas e só oito mil hectares são de assentamentos”, queixa-se.
Lega não poupa críticas ao governo Lula (2002-2010). “Fez pouquíssimos assentamentos, simplesmente regularizou os que já existiam. No seu mandato, o campo foi esquecido”. As terras destinadas aos assentamentos, diz, são pouco férteis e demandam conhecimentos técnicos que a maioria dos assentados não possui. Nesse quesito, ele acusa a ausência dos técnicos do Incra. “Só para o lote que eu tenho, seriam necessários oito mil quilos de calcário por alqueire”. De acordo com Lega, o instituto é obrigado ceder um técnico por quatro horas anuais a cada família assentada. “Pergunte para qualquer um aqui quem já viu um técnico do Incra”, satiriza.
Agarrados a lonas do barraco em dias de chuva
Todos os dias, Jocelaine da Silva, 30 anos, deixa seu barraco e caminha três quilômetros para buscar água na sede dos sem-terra num dos acampamentos de Iaras. Tampouco há luz em sua casa e, ao repórter, ela se desculpa por não poder servir um café quente. “É que eu não tenho garrafa térmica”.
Jocelaine e quatro dos seis filhos. Todos os dias, três quilômetros para buscar água
Desde o final de 2004, ela faz parte do movimento. Ingressou por não conseguir manter-se financeiramente após a morte do primeiro marido, que lhe deixou uma pensão inferior a um salário mínimo por mês. Desde a infância trabalhou a terra, num sítio em Paraguaçu Paulista, onde nasceu.
Hoje acampada em Iaras, ela espera a regularização de um lote de terra para ser assentada. Até lá, não recebe nenhum dos auxílios do Incra para iniciar uma produção agrícola em pequena escala. De maneira bem irregular, às vezes com intervalos de até três meses, ela ganha uma cesta básica do Governo Federal que costuma durar 15 dias, visto que são seis filhos para sustentar.
Ter um pedaço de chão para Jocelaine significa poder dar melhores oportunidades às crianças. Dos seis, quatro estudam na rede municipal de Iaras – um trajeto que costuma durar até duas horas diariamente. Em caso de chuva forte, as estradas de terra que cortam o acampamento e seguem em direção a Iaras ficam intransitáveis. Mas, conforme explica a própria Jocelaine, há outras preocupações em dias chuvosos. As paredes de seu barraco são de lona e em muitos pontos estão rasgadas e atravessadas pelo vento. Em temporais, ela e os filhos permanecem agarrados às lonas para tentar evitar maiores estragos.
Seu atual marido é pedreiro em São Paulo e a visita quinzenalmente. Juntos, eles conseguem uma renda de cerca de 1,5 mil reais mensais. Jocelaine sonha com o dia em que, com um lote de terra regularizado, seu marido volte de São Paulo para trabalhar no campo. Ela sabe que, para isso, muito mais do que um pedaço de chão, o casal vai precisar de todos os auxílios oferecidos pelo Incra. “Vamos precisar preparar a terra, comprar sementes, fazer a adubação, de todos os benefícios”.
Sobre sua espera e a indefinição da regularização de novos assentamentos, ela é taxativa: “Eu só consigo pensar que tem alguém se aproveitando dessa situação. Aqui tem muitas terras públicas e por isso dá para fazer assentamentos para todos os acampados. Então não é possível que alguém não esteja se aproveitando disso, porque dinheiro eu acho que o governo tem”.
No limbo do Incra
Os rumos da reforma agrária nos dois mandatos de Lula também geram desilusão em Marcelo Souza, de 34 anos. Souza fez campanha para o petista em 2002 e conta que sua maior decepção ocorreu com a regularização de latifúndios na Amazônia, com o programa Terra Legal. Ele ingressou nos acampamentos do MST em 2002 e está assentado há quase dois anos. Ou melhor, semi-assentado.
Seu lote de seis alqueires ainda não foi regularizado pelo Incra, apesar de há sete anos estar destinado para o assentamento de famílias. Diante do impasse, as famílias que deveriam ocupar a terra montaram seus barracos no lote, como uma forma de pressionar a regularização. Nenhum avanço foi feito. Pela falta de documentação, Souza, que vive com a mulher Keli Cristina, não conseguiu nenhum dos benefícios técnicos do instituto.
Marcelo e Keli em meio aos tocos de eucalipto que inviabilizam a plantação. "Estou pior do que quando era acampado"
Sem auxílio técnico, a produção no seu pedaço de terra é impossível. A maioria do terreno é preenchida por tocos de eucalipto que, além de impedirem o plantio, despejam acidez no solo. Com renda de pouco mais de 400 reais mensais, ele não consegue alugar o maquinário para limpar o terreno.
Hoje, mesmo em cima de um pedaço de chão, ele diz enfrentar uma situação pior do que nos seus tempos de acampado. “Sou tratado como um indigente pelo Incra. Nos acampamentos pelo menos eu era reconhecido como um camponês que luta pela terra”. Sem ser reconhecido oficialmente como assentado, ele não conseguiu matricular o filho num curso de técnico agrícola promovido pelo instituto.
Apesar das decepções, ele mantém a esperança. “Acreditar a gente sempre acredita, não tem como”.
Extrema-unção da reforma agrária
Na cidade de Iaras, há cerca de 150 famílias não assentadas nos acampamentos Maria Cícera, Oriel Alves e Rosa Luxemburgo. Dentre as outras 500 famílias já assentadas, não é incomum ouvir queixas de não recebimento dos benefícios de fomento a agricultura familiar sob responsabilidade do Incra.
Em Iaras, são 150 famílias acampadas. Dados do Inesc mostram que gastos com distribuição de terras caíram no segundo mandato de Lula e continuam em queda no governo Dilma
Por: Ricardo Carvalho
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