Quem tem medo do Wikileaks? (texto de Manuel Castells)
Ciências Humanas e Sociais

Quem tem medo do Wikileaks? (texto de Manuel Castells)


“Uma organização de comunicação livre, assente no trabalho voluntário de jornalistas e tecnólogos, como depositária e transmissora daqueles que querem revelar anonimamente os segredos de um mundo podre, enfrenta neste momento aqueles que não se envergonham das atrocidades que cometem, mas se alarmam com o facto de que as suas maldades sejam conhecidas por aqueles que elegemos e pagamos”
Manuel Castells

Quem tem medo do Wikileaks ?
(texto de Manuel Castells, publicado no jornal La Vanguardia, em 30/11/2010)

Tinha que acontecer. Há tempo os governos estão preocupados com sua perda de controle da informação no mundo da internet. Já estavam incomodados com a liberdade de imprensa. Mas haviam aprendido a conviver com os meios de comunicação tradicionais. Ao contrário, o ciberespaço, povoado de fontes autónomas de informação, é uma ameaça decisiva a essa capacidade de silenciar sobre a qual a dominação sempre se fundou. Se não sabemos o que está acontecendo, mesmo que teimamos, os governantes têm as mãos livres para roubar e amnistiar-se mutuamente, como na França ou na Itália, ou para massacrar milhares de civis e dar livre curso à tortura, como fizeram os Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão.

Os ataques contra o Wikileaks não questionam a a veracidade, mas criticam o fato de sua divulgação com o pretexto de que colocam em perigo a segurança das tropas e cidadãos. Por isso o alarme das elites políticas e mediáticas diante da publicação de centenas de milhares de documentos originais incriminatórios para os poderes fáticos nos Estados Unidos e em muitos outros países por parte do Wikileaks. Trata-se de um meio de comunicação pela internet, criado em 2007, publicado pela fundação sem fins lucrativos registrada legalmente na Alemanha, mas que opera a partir da Suécia. Conta com cinco empregados permanentes, cerca de 800 colaboradores ocasionais e centenas de voluntários distribuídos por todo o mundo: jornalistas, informáticos, engenheiros e advogados, muitos advogados para preparar sua defesa contra o que sabiam que lhes aconteceria.

O seu orçamento anual é de cerca de 300 milhões de euros, fruto de doações, cada vez mais confidenciais, mesmo que algumas sejam de fontes como a Associated Press. Foi iniciado por parte de dissidentes chineses com apoios em empresas de internet de Taiwan, mas pouco a pouco recebeu o impulso de activistas de internet e defensores da comunicação livre unidos numa mesma causa global: obter e divulgar a informação mais secreta que governos, corporações e, às vezes, meios de comunicação ocultam dos cidadãos. Recebem a maior parte da informação pela internet, mediante o uso de mensagens encriptadas com uma avançadíssima tecnologia de encriptação cujo uso é facilitado àqueles que querem enviar a informação seguindo seus conselhos, ou seja, desde cibercafés ou pontos quentes de Wi-Fi, o mais longe possível de seus lugares habituais. Aconselham não escrever a nenhum endereço que tenha a palavra wiki, mas utilizar outras que disponibilizam regularmente (tal como http://destiny.mooo.com). Apesar do assédio que receberam desde a sua origem, foram denunciando corrupção, abusos, tortura e matanças em todo o mundo, desde o presidente do Quénia até a lavagem de dinheiro na Suíça ou as atrocidades nas guerras dos Estados Unidos.

Receberam numerosos prémios internacionais de reconhecimento pelo seu trabalho, incluindo os do The Economist e da Amnistia Internacional. É precisamente esse crescente prestígio de profissionalismo que preocupa o poder. Porque a linha de defesa contra as webs autónomas na internet é negar-lhes credibilidade. Mas os 70.000 documentos publicados em Julho sobre a guerra do Afeganistão ou os 400.000 sobre o Iraque divulgados agora, são documentos originais, a maioria procedentes de soldados norte-americanos ou de relatórios militares confidenciais. Em alguns casos, filtrados por soldados e agentes de segurança norte-americanos, três dos quais estão presos. O Wikileaks tem um sistema de verificação que inclui o envio de repórteres seus ao Iraque, onde entrevistam sobreviventes e consultam arquivos.

De fato, os ataques contra o Wikileaks não questionam sua veracidade, mas criticam o fato de sua divulgação, sob o pretexto de que colocam em perigo a segurança das tropas e de cidadãos. A resposta do Wikileaks: os nomes e outros sinais de identificação são apagados e são divulgados documentos sobre fatos passados, de modo que é improvável que possam colocar em perigo operações actuais. Mesmo assim, Hillary Clinton condenou a publicação sem comentar a ocultação de milhares de mortos civis e as práticas de tortura revelados pelos documentos. Nick Clegg, o vice-primeiro-ministro britânico, ao menos censurou o método, mas pediu uma investigação sobre os fatos.

Mas o mais extraordinário é que alguns meios de comunicação estão colaborando com o ataque que os serviços de inteligência lançaram contra Julian Assange, diretor do Wikileaks. Um comentário editorial da Fox News chega inclusive a cogitar o seu assassinato. E mesmo sem ir tão longe, John Burns, no The New York Times, procura mesclar tudo num nevoeiro sobre o personagem de Assange. É irónico que isso seja feito por este jornalista, bom colega de Judy Miller, a repórter do The Times que informou, consciente de que era mentira, a descoberta de armas de destruição em massa (veja-se o filme A zona verde).

Essa é a táctica mediática mais antiga: para que se esqueçam da mensagem, atacar o mensageiro. Nixon fez isso em 1971 com Daniel Ellsberg, que publicou os famosos papéis do Pentágono que expuseram os crimes no Vietnam e mudaram a opinião pública sobre a guerra. Por isso Ellsberg aparece em entrevistas colectivas ao lado de Assange.

Personagem de novela, o australiano Assange passou boa parte de seus 39 anos mudando de lugar desde criança e, usando seus dotes matemáticos, fazendo ativismo hacker para causas políticas e de denúncia. Agora está mais do que nunca na semiclandestinidade, movendo-se de um país para outro, vivendo em aeroportos e evitando países onde se procuram pretextos para prendê-lo. Por isso, foi aberto na Suécia, onde se encontra mais livre, um processo contra ele por violação, que logo foi negado pela juíza (releiam o começo do romance de Stieg Larsson e verão uma estranha coincidência). É o Partido Pirata da Suécia (10% dos votos nas eleições europeias) que está protegendo o Wikileaks, deixando seu servido central trancado em um refúgio subterrâneo à prova de qualquer interferência.

O drama apenas começou. Uma organização de comunicação livre, assentada no trabalho voluntário de jornalistas e tecnólogos, como depositária e transmissora daqueles que querem revelar anonimamente os segredos de um mundo podre, enfrenta aqueles que não se envergonham das atrocidades que cometem, mas se alarmam com o fato de que suas maldades sejam conhecidas por aqueles que elegemos e pagamos.




loading...

- Wikileaks, Em Favor Da Defesa Da Liberdade De Imprensa E Dos Valores Fundamentais
Descubra como o Wikileaks tornou-se um dos principais institutos de defesa pela verdade e pela justiça através dos vazamentos de informações secretas. Instalado nos servidores do Pirate Bay, o site está protegido pelas estritas leis suecas que protegem...

- Protesto Global A Favor Da Wikileaks E Da Liberdade De Expressão ( Dia 15 De Janeiro, Por Todo O Mundo)
Para este Sábado, dia 15 de Janeiro, foi convocado um protesto global a favor da wikileaks e liberdade de expressão. Os anonymous portugueses, através do Portugal Anónimo, vão estar no sítio do costume: na Brasileira do Chiado Próximo sábado...

- A Ciberguerra Do Wikileaks ( Texto De Manuel Castells)
Como documentei no meu livro Comunicação e Poder, o poder baseia-se no controle da comunicação. A reacção histérica dos Estados Unidos e outros governos contra o Wikileaks confirma isso. Entramos numa nova fase da comunicação política. Não...

- Wikiliquidação Do Império? ( Texto De Boaventura Sousa Santos)
A divulgação de centenas de milhares de documentos confidenciais, diplomáticos e militares, pela Wikileaks, acrescenta uma nova dimensão ao aprofundamento contraditório da globalização. A revelação, num curto período, não só de documentação...

- Debate Sobre A Wikileaks E O Império Na Livraria-bar Gato Vadio No Dia 16 De Dez. às 22h.
Wikileaks, o Império, a seita e o liberalismo Debate Rui Pereira (jornalista e professor universitário) Manuel António Pina (Escritor e cronista) HacklaViva (Grupo activista) Quinta-feira, dia 16 de Dezembro, 22h Entrada Livre Gato Vadio Rua do Rosário...



Ciências Humanas e Sociais








.