Ciências Humanas e Sociais
Partidos, ideologia e composição social
Partidos políticos brasileiros: consistência ideológica e social no recrutamento parlamentarMaria do Socorro Sousa Braga
Maria do Socorro Sousa Braga é doutora em ciência política e professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar, SP) [email protected]
Partidos, ideologia e composição social.
Um estudo das bancadas partidárias na Câmara dos Deputados
Leôncio Martins Rodrigues
São Paulo: Edusp, 2002. 242 p.Assiste-se, desde meados dos anos 1980, a renovado debate institucional a respeito do desempenho da democracia brasileira. No centro das discussões estão os partidos políticos e o sistema partidário da atualidade. Para grande parte dessas análises os partidos são fracos em termos organizacionais, redundando em baixos graus de representatividade, de diferenciação programática e ideológica, bem como de coesão e disciplina parlamentares. E a explicação para a fragilidade dos atores partidários adviria, segundo a maioria das análises, do tipo de sistema eleitoral adotado para as Casas legislativas e da legislação partidária. Sem checar os possíveis efeitos de variáveis organizacionais ou ainda socioeconômicas, esses estudos procuram mostrar que, enquanto o sistema eleitoral incentivaria a fragmentação excessiva, a legislação partidária não inibiria a infidelidade e a indisciplina parlamentares. Já o sistema partidário é criticado por apresentar os mais elevados patamares de fragmentação, volatilidade e regionalismo. Entre os elementos apontados como responsáveis por essas características destacam-se a combinação do sistema de governo presidencialista com o modelo de representação proporcional com lista aberta, uma legislação partidária permissiva e também o tipo de federalismo brasileiro - marcado por forte autonomia dos governadores. O funcionamento das instituições democráticas nos moldes representativos estaria comprometido em razão desses elementos.
A análise descritiva da composição social das bancadas de seis dos principais partidos na Câmara dos Deputados (PPB, PFL, PMDB, PSDB, PDT e PT) constitui o objeto de investigação do livro do cientista político Leôncio Martins Rodrigues. Dois critérios balizaram a seleção desses atores partidários em meio aos 30 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral e, portanto, aptos a participar do pleito de 1998: ter obtido ao menos 5% das cadeiras parlamentares e apresentar um perfil programático-ideológico consistente. Juntos, os seis partidos tidos como relevantes controlavam 84% da Câmara Federal naquela legislatura.
O trabalho de Rodrigues é oportuno por preencher uma lacuna, dado o reduzido número de estudos que examinam as fontes sociais de recrutamento da classe política brasileira a partir de uma perspectiva antes inexplorada - a da sociologia política -, e por apresentar novos elementos de avaliação dos partidos políticos no que diz respeito à configuração do seu perfil ideológico, à sua capacidade de expressar diferenças sociais e de grupos de interesses, e à sua função de dar sustentação partidária aos governos.
O enfoque sociológico considera as atividades dos partidos como resultado das "demandas" dos grupos sociais por eles representados e, em sentido mais amplo, apresenta os partidos como manifestações das divisões sociais no âmbito político. Embora o trabalho de Rodrigues se filie a esse campo de estudos, ele não vincula direta e mecanicamente o social ao político. O próprio autor chama nossa atenção para as limitações desse tipo de análise determinista. Enfatiza a tendência de certas interpretações a tomar essa direção ao reduzir a autonomia do político, justamente porque não levam em consideração "a complexidade das disputas políticas entre os múltiplos grupos de interesses nas democracias de massa", e especialmente por "não verem o correlato aparecimento do político profissional que irá formar a classe política com valores e objetivos próprios".
Em seu trabalho, Rodrigues busca identificar o "caráter de classe" dos partidos examinados através do patrimônio e das profissões/ocupações dos parlamentares eleitos em 1998 e relaciona essas variáveis com as orientações programáticas e ideológicas dos partidos, convencionalmente classificadas pela literatura especializada como de direita, de centro e de esquerda. Outra variável social incorporada à análise, visando a verificar diretamente as fontes de recrutamento dos deputados federais e, indiretamente, a consistência dessa classificação ideológica, é a formação educacional.
Apesar das limitações do estudo no que diz respeito ao número de membros da classe política (somente os parlamentares eleitos) e de partidos analisados, e mesmo de legislaturas incorporadas, ou ainda - e mais importante, como reconhece o próprio autor -, no que diz respeito ao uso exclusivo da composição social para o estudo das orientações partidárias, o trabalho consegue demonstrar relações cruciais na diferenciação das nossas organizações partidárias quanto ao espectro político-ideológico.
Em sua investigação, Rodrigues utilizou como principais fontes de informação a publicação Deputados brasileiros - Repertório biográfico, do Centro de Documentação e Informação da própria Câmara dos Deputados, referente à 51a Legislatura (1999-2002), eleita em outubro de 1998, e o Dicionário histórico-biográfico brasileiro, elaborado pelo CPDOC da Fundação Getulio Vargas. Como fonte primária fundamental examinou as declarações de bens de 401 candidatos a deputado federal entregues aos Tribunais Regionais Eleitorais de seus estados quando do registro de suas candidaturas.
Uma hipótese orienta o trabalho: a de que "haveria diferenças significativas na composição social das respectivas bancadas - verificáveis empiricamente pelos segmentos sócio-profissionais nelas presentes - e de que a essas diferenças corresponderiam posições políticas programáticas e ideológicas, convencionalmente tidas como de direita, de centro e de esquerda". Essa hipótese tem como pontos de partida duas suposições. A primeira é a de que "os parlamentares, segundo suas origens e seus status socioeconômicos, tenderiam a candidatar-se por partidos que mais se aproximassem de suas convicções ideológicas e que, idealmente, mais atendessem aos seus interesses pessoais". A segunda, diretamente relacionada à anterior, defende que as "posições políticas e ideológicas têm alguma relação com o modo como as pessoas obtêm sua subsistência, seu prestígio, sua legitimidade e seu poder".
Cumpre dizer, contudo, que apesar de procedentes, essas suposições dão conta apenas das atitudes e valores de um dos lados do processo de recrutamento político - o dos selecionados, isto é, dos parlamentares eleitos entre aqueles que conformavam o universo de filiados de cada partido que disputava uma candidatura. Para uma análise mais profunda das orientações político-ideológicas do recrutamento realizado pelas organizações partidárias, faz-se necessário investigar outras dimensões analíticas. Entre essas é crucial a análise das orientações e motivações político-ideológicas dos selecionadores, ou seja, daquelas lideranças partidárias que, de acordo com determinados critérios, selecionaram entre os seus filiados aqueles que vieram a compor as bancadas examinadas.
De todo modo, a verificação da hipótese revelou resultados significativos e consistentes, inclusive com outros trabalhos anteriores, ao comprovar os seguintes aspectos:
1) O recrutamento dos parlamentares federais dos partidos avaliados vem basicamente de quatro segmentos ocupacionais: setor empresarial, profissões liberais, funcionalismo público e magistério. É importante sublinhar o trabalho metodológico meticuloso do autor na elaboração identificação? dessas profissões. Rodrigues utilizou um critério quantitativo, a partir do qual captou os segmentos sócio-ocupacionais de maior peso na Câmara dos Deputados. Outro critério usado foi qualitativo, visando a detectar aqueles setores numericamente menores na composição daquela Casa, porém importantes na sociedade. Ainda houve mais um procedimento metodológico importante na montagem das profissões: o uso da(s) última(s) profissão(ões)/ocupação(ões) exercida(s) pelos parlamentares antes da obtenção do primeiro cargo público eletivo. Ao comparar o caso brasileiro com outras democracias ocidentais, Rodrigues verificou que o recrutamento para a classe política naqueles países também ocorre em número pequeno de categorias ocupacionais, similares às encontradas aqui.
2) A vinculação entre as posições político-ideológicas dos partidos e a composição social (ocupações/patrimônio) das respectivas bancadas partidárias. O autor conclui que empresários, profissionais liberais e membros da alta burocracia federal e estadual - mais nitidamente encontrados na bancada pefelista -, portanto pessoas com grande patrimônio, são a maioria nos partidos de direita (PPB, PFL). Nos partidos de esquerda (PDT, PT), especialmente entre os petistas, predominam deputados das classes populares e média, oriundos, sobretudo, das categorias de professores e, depois, de trabalhadores industriais, assalariados e do setor de serviços e alguns trabalhadores rurais. Já os partidos situados no centro do espectro político ideológico (PMDB e PSDB) agregam majoritariamente profissionais liberais e professores, mas também contam com uma proporção elevada, ainda que minoritária, de empresários, normalmente do setor urbano. Em termos patrimoniais, eles ocupariam a faixa médio-alta. De acordo com Rodrigues "é a combinação singular dessas categorias que individualiza os partidos e os faz diferentes entre si". Indo mais além, o autor chega a defender que é a "composição social dominante", ou seja, a combinação de categorias sócio-profissionais majoritárias presentes na bancada parlamentar que determinaria a ideologia, o programa, as metas e mesmo as estratégias dos partidos.
3) Há correspondência elevada entre alta formação educacional e ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados. Rodrigues mostra que 73% do total dos deputados têm algum diploma de curso superior. Ao comparar as bancadas partidárias, o autor encontrou variações nos níveis de escolaridade que estão relacionadas às atividades profissionais que os deputados exerciam antes de entrar na vida pública, o que, por sua vez, está vinculado ao tipo de curso superior realizado (direito, medicina e engenharia, nessa ordem). Nesse quesito educacional, os partidos mais à esquerda têm a maior parcela de deputados com mestrado/doutorado, sendo o PT o partido com maior porcentagem (14%). Outro dado digno de nota levantado pelo estudo de Rodrigues é o fato de o PT também ser o partido com a maior parcela de deputados que não terminaram o segundo grau (9%), o que se deve, segundo o autor, à grande presença de professores e ao mesmo tempo de trabalhadores manuais na bancada petista. Na bancada do PPB - partido situado à direita do espectro político - Rodrigues encontrou a maior proporção de empresários e de deputados com grande patrimônio, sendo o segundo partido com a menor porcentagem de parlamentares que não possuem curso superior. Vale notar, portanto, que dois partidos - um à direita e outro à esquerda - seriam as principais portas de entrada dos setores menos escolarizados no sistema político.
A partir dessas evidências empíricas, Rodrigues consegue ampliar consideravelmente as percepções acerca das diferenças que singularizam nossas organizações partidárias, o que também significa observar que os partidos estão demonstrando consistência em termos de sua representatividade. Ao relacionar a composição sócio-ocupacional, a dimensão patrimonial e os níveis de escolaridade, o autor conclui que os seis partidos, além de diferentes ideologicamente, também se diferenciam quanto aos segmentos socioeconômicos neles representados.
Sendo assim, Rodrigues traz uma contribuição importante ao debate sobre a vitalidade de nossos partidos políticos na atual arena democrática, ajudando a desconstruir a visão tradicional que ainda hoje tem certo peso na opinião pública, bem como entre cientistas políticos brasilianistas e brasileiros, de que estaríamos fadados ao "subdesenvolvimento partidário".
Revista Estudos Históricos - FGV
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