João Quartim de Moraes
UNICAMP
Fernando Rey Puente. Os Sentidos do Tempo em Aristóteles.
Loyola/Fapesp, São Paulo 2001, 381 páginas
I- Tendo conhecido ?in fieri? a tese de doutorado que deu origem a Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, apenas retomo, no presente comentário, algumas das animadas discussões que ela suscitou. Antes, porém, cabe o liminar reconhecimento da solidez, originalidade e densidade do estudo que Fernando Puente nos oferece. Apoiado na análise rigorosa dos textos e na absorção crítica da vasta literatura que o tema tem suscitado desde os Antigos, o autor ultrapassa largamente o khrónos enquanto tema da física, para considerá-lo ?da maneira a mais universal possível?, em ?todos os textos [...] do Corpus aristotelicum que (a ele) se referissem de algum modo? (p. 16). Com efeito, a temporalidade é tematizada por Aristóteles em outras dimensões: o ?quando? categorial (poté), a duração psíquica, o tempo da ação, o da produção etc.
A amplitude da bibliografia corresponde a esta ampliação da perspectiva analítica. Ela ocupa vinte e oito páginas e se subdivide em quatorze tópicos, não perdendo em compreensão o que ganha em extensão. Nada a ver com aqueles extensos catálogos em que as referências se justapõem sem nexo aparente entre si e com a obra que pretensamente as teria levado em conta. O leitor lá encontrará uma informação atualizada e abrangente, que inclui os comentadores italianos e alemães, freqüentemente obnubilados entre nós pelo predomínio dos ingleses e franceses.
Como explica no Prefácio, foi sob a influência da filosofia alemã, nomeadamente de Schelling, ao qual consagrara sua tese de mestrado1 , que Fernando Puente se aproximou de Aristóteles. Ao influxo da notável ?efervescência cultural em torno à reabilitação histórico-filológica do pensamento grego?, Schelling, que estava ?buscando [...] particularmente nos conceitos modais do mestre de Estagira, um modo de se opor ao pensamento de Hegel?2 , manteve contato, desde 1842, com os mais eminentes estudiosos alemães de Aristóteles de então : Trendelenburg, Bekker, Bonitz, Schwegler e Zeller.
II- Que tempo se diga em múltiplos sentidos pode ser uma hipótese fecunda. Mas, à primeira vista, a ressonância aristotélica do ?pollakhôs légetai? deixa na sombra o insólito do título Os Sentidos do Tempo em Aristóteles. O próprio autor, porém chama a atenção para sua ?ambigüidade?, remetendo-a à polissemia do termo sentido no idioma português3 . Deixando de lado o risco de derrapagem lógica (sentido pode ser polissêmico, mas polissemia tem um sentido só e é dele que se trata aqui), importa saber se tempo é um termo homônimo (uma homonímia pròs hén, sem dúvida, já que, evidentemente, a relação entre seus hipoteticamente múltiplos significados não é a mesma que entre os do significante ?manga? em nosso idioma) e, no que concerne à relação entre poté e khrónos, se seriam sinônimos (isto é, dois nomes para a mesma ?coisa?), análogos ou parônimos. (Lembremo-nos de que é poté que Aristóteles apresenta nas Categorias como um dos sentidos originários do ser).
Este complexo de questões é anunciado já no primeiro capítulo:
?[...] a diversidade dos termos que exprimem o fenômeno temporal em Aristóteles (poté, khrónos, kairós, nûn etc.), bem como sua evidente correlação [...] impedem-nos pensá-los segundo uma simples relação de sinonímia ou de homonímia meramente casual. Constataremos [...] que há uma multiplicidade de termos designando diferentes aspectos do tempo [...]. Relacionar-se-ia, então, esse emaranhado terminológico consoante a relação pròs hén ou a analogia? Ou haveria, além destes, outro tipo de articulação entre esses conceitos??4
O livro todo se ocupará destas perguntas, mas é sobretudo na primeira parte, ?Os sentidos do ente e do tempo?, composta de quatro capítulos (consagrados respectivamente aos sentidos categorial, acidental, veritativo e modal do tempo), que intervém o esforço analítico para elucidá-las radicalmente. A segunda parte, ?Os tipos de substância e o tempo?, retoma a senda percorrida desde a Antigüidade pelos comentadores do tema tal qual vem exposto na Física, distinguindo o físico, o cosmológico, o metafísico. Esta distinção nos parece, sem prejuízo da densidade e rigor analíticos, um tanto artificial, já que o sentido cosmológico se inscreve no físico e, por sentido metafísico, o autor entende a discussão do infinito e do eterno.
A terceira parte, enfim, estuda ?o âmbito humano e o tempo?, em dois capítulos, que consideram o tempo, respectivamente, nas dimensões ?psicofisiológica? e ?prática? do homem.
III- No breve espaço da presente resenha, prosseguindo uma discussão iniciada na década passada, evocaremos tão somente algumas discrepâncias a respeito de questões decisivas da interpretação do estatuto ontológico do tempo.
(a)- No capítulo em que examina a definição do sentido físico do tempo, Fernando Puente erige-o em ?expressão conceitual de uma condição epistemológica necessária e universal para que o próprio devir se torne compreensível para nós?5 . Não conseguimos acompanhá-lo. Devir, nesta frase, é sinônimo de movimento? Se o tempo torna o devir compreensível, o que torna o tempo compreensível? O que seria a expressão não conceitual de uma ?condição epistemológica?? Uma intuição ?a priori?? Se é quando percebemos o movimento que nos damos conta de que o tempo passou, porque quando não o percebemos, não nos parece que o tempo tenha passado, como erigir o tempo em condição epistemológica do movimento? Como conceber numa filosofia que seguramente não é idealista, condições epistemológicas divorciadas das condições da percepção?
Ross sustenta a tese oposta, argumentando que, em fórmulas como ?o tempo é aquilo que é contado no movimento?, o termo ?aquilo? (ti) não deve ser entendido como significando que é pelo reconhecimento dos diferentes instantes presentes (= ?agoras?) como diferentes que a existência do movimento é reconhecida?. O presente ou, como ele escreve, a ?presentidade? (?nowness?), abstraída do movimento, mais exatamente, da presença do móvel, é ?exatamente igual? a qualquer outra6 ; é percebendo que o corpo que estava em ?a? está agora em ?b? ou que aquilo que era branco é agora negro, que detectamos a pluralidade dos ?agora? e conseqüentemente o decorrer do tempo. Tal é, conclui, ?o claro ensinamento do início do ch.11 (do livro IV da Física). O tempo não é a ratio cognoscendi da mudança (change). É antes (rather) sua ratio essendi?7 .
O argumento do ilustre erudito britânico parece-nos plenamente convincente quando nega que o tempo seja a ratio cognoscendi do movimento. Mas, embora atenuada por um rather, a conclusão positiva, de que o tempo condiciona ontologicamente o movimento, faria de Aristóteles um partidário, ?avant la lettre?, de uma concepção newtoniana do tempo absoluto. Podemos predicar de uma estofa, sem contradição, branco e negro. Não é o tempo que torna possível que a estofa, antes branca, seja tingida de negro. O fato radical é a mudança, da qual o tempo é apenas uma afecção, um atributo do movimento e este está sempre no sujeito singular, nas substâncias móveis. O tempo não é, pois nem ratio cognoscendi nem ratio essendi do movimento. Não o condiciona nem epistemologicamente nem ontologicamente.
(b)- Alertando que ?não devemos transpor anacronicamente a dicotomia criada na modernidade entre sujeito e objeto?, Fernando Puente declara que
?a psique e o mundo físico são (na visão de Aristóteles) intimamente conectados. Este entrelaçamento constitutivo entre a alma e as categorias fundamentais do mundo natural é exemplarmente ilustrado na magistral análise sobre o tempo [...], pois o tempo só pode ser pensado na conjunção constitutiva entre a alma e o mundo físico e jamais como um produto de apenas um dos pólos deste binômio?8
Conexão íntima, entrelaçamento ou conjunção constitutiva podem significar muitas coisas, mas não particularmente a relação complementar da psique com a phúsis. A alma, pelo menos a perceptiva, faz partedesta. Para Aristóteles, com efeito, sendo forma e princípio de movimento do corpo, a alma perceptiva/desiderativa não se contrapõe ao ?mundo físico?, mas nele se inscreve. Constatamos assim que a dicotomia moderna entre sujeito e objeto é mais tenaz ainda do que adverte nosso autor. Tanto mais que, em apoio de sua tese, refere notadamente uma frase de Heidegger, segundo o qual ?o fenômeno do tempo, considerado em um sentido primacial, está relacionado com o conceito de mundo e, com isso, com a própria estrutura do estar-aí?9 . Afinal, o que, no conhecimento, a começar da linguagem, não está relacionado com a própria estrutura do estar-aí? O tempo, para Aristóteles, não está diretamente relacionado com o conceito de mundo, mas tão somente com os de movimento e de número.
1 Publicada sob o título As concepções antropológicas de Schelling, Ed. Loyola, São Paulo, 1997.
2 Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 11.
3 Ib., p.15.
4 Ib., pp. 44-45.
5 Ib., p. 130.
6 Ross, Aristotle?s Physics, Introdução, p.65: ?The nowness, the felt presentness, of each sucessive experience is exactly like the nowness of any other. It is rather by the noticing of change, by seeing that a body which was at A is at B, or that a body which was white is black, that we detect the existence of different nows and of a lapse of time between them?. Hegel, antes de Ross, e evidentemente numa perspectiva totalmente distinta, mostrou que contrariamente à convicção espontânea da consciência sensível, o ?aqui? e o ?agora? não são o que há de mais concreto, e sim, ao contrário, o que há de mais vazio e abstrato. Digo ?isso é uma árvore?. Olho para outro lado e digo ?isso é uma casa?. Digo ?agora é noite?. Na manhã seguinte, direi ?agora é dia?. O ?agora? se conservou, mas como um ?agora? que não mais é noite. No léxico (e no pensamento) hegeliano, ele é ?um negativo em geral?.
7 Ross, ib., p. 65.
8 Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, pp. 136-137.
9 Ib., p. 137, nota 24. A ênfase em itálico está no original.
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