Os inventores de doenças
Ciências Humanas e Sociais

Os inventores de doenças



Saiu do prelo um livro que deveria merecer a devida atenção. Tem como título «Os inventores de doenças» (ed. Âmbar, 2006) e o seu autor é Jorg Blech, jornalista científico de órgãos de comunicação como a revista Stern, e que trabalha actualmente em Der Spiegel, assim como no jornal Zeit. O livro pretende constituir-se como uma denúncia corajosa e bem documentada dos abusos praticados pela indústria farmacêutica em busca de mais lucro.
O autor revela-nos de que forma os grandes consórcios farmacêuticos se empenham em transformar-nos sistematicamente em doentes para grande proveito lucrativo das empresas.


Reproduzimos um breve excerto do livro:

Segundo Voltaire, a arte que os médicos praticam consiste em entreter o doente até que a natureza o cure. Actualmente, inverteu-se a conclusão do filósofo francês: a medicina moderna faz crer às pessoas que a natureza as ataca constantemente com novas doenças que só podem ser curadas pelos médicos.
(…)

Hoje em dia, as empresas farmacêuticas e os grupos de interesses médicos inventam as doenças: a doença transformou-se num produto industrial. Para tal, as empresas e as associações convertem os processos normais da existência humana em problemas médicos, «medicalizam» a vida. (…)
O desejo inato do homem em estar saudável é uma coisa natural. Mas os inventores de doenças alimentam esse desejo, utilizam-no para os seus próprios fins e tiram proveito disso de forma calculada.

(…)

Para poder manter o enorme crescimento dos anos anteriores, a indústria da saúde cada vez tem de tratar mais pessoas que, na realidade, estão saudáveis. Os grupos farmacêuticos que operam globalmente e as associações de médicos ligadas internacionalmente definem de novo a nossa saúde: os altos e baixos naturais da vida e os comportamentos normais são reciclados de forma sistemática em estados patológicos. As empresas farmacêuticas patrocinam a invenção de quadros clínicos completos, e conseguem assim novos mercaod s para os seus produtos.

(…)

«É fácil inventar novas doenças e novos tratamentos», constata o British Medical Journal. Muitos precoessos normais da vida – o nascimento, o envelhecimento, a sexualidade, a infelicidade e a morte – podem ser medicados.»(in Moynihan, R e Smith, R. «Too much medicine?», British Medical Journal, 324, pp 859-860, 2002)

(…)

O livro fala também de um movimento oposto. Um número considerável de médicos, a meu ver cada vez maior, revolta-se contra a nedicalização da vida exercida pela indústria e os seus colaboradores médicos. Para este grupi, a ética médica continua a ser mais valiosa que a sombria perspectiva de fazer passar as pessoas saudáveis por doentes.

(…)

No início do séc. XX, um médico chamado Knock foi o encarregado de tirar da cabeça das pessoas a ideia de saúde. Este francês criou um mundo onde só havia doentes: «Toda a pessoa sã é um doente que ignora que o é».
Knock começou a exercer numa aldeia montanhosa chamada Saint-Maurice. Os habitantes eram saudáveis e não iam ao médico. O antigo médico da aldeia, o empobrecido Parpalaid, tentou consolar o sucessor dizendo-lhe: «Aqui terá a melhor clientela que existe: deixá-lo-ão em paz». Mas Knock não estava disposto a conformar-se com isso.
Porém, como podia um principiante atrair ao consultório aquela gente cheia de vida? Que poderia receitar a pessoas saudáveis? Knock convenceu astuttamente o professore da povoação e conseguiu que este arengasse aos aldeões acerca dos supostos perigos que os seres vivos mais diminutos lhes faziam correr. Contratou o pregoeiro da aldeia e mandou-o anunciar que o médico convidava todos para uma consulta gratuita, para «limitar a inquietante propagação de oenças de todo o tipo que desde há alguns anos alastram pela nossa região, outrora tão sadia». A sala de espera ficou a abrrotar de gente.
Nas suas visitas, Knock diagnosticou sintomas estranhos e inculcou nos ingénuos aldeões a necessidade de um cuidado permanente. A partir de então, muitos dele ficaram de cama e a única coisa que tomavam, quando muito, era água.A aldeia parecia um hospital: pessoas saudáveis, só restavam as estritamente necessárias para cuidar dos doentes. O farmacêutico tornou-se um homem rico, tal como o dono da estalagem, cuja sala era utilizada com pleno rendimento, como hospital de campanha, aberto vinte e quatro horas por dia.
Todas as noites, Knock contemplava entusiasmado um mar de luzes: 250 quartos bem iluminados – segundo prescrição médica - , 250 termómetros embutidos nas cavidades corporais correspondentes, até darem as dez.». «Quase toda a luz me pertence», entusiasmava-se Knock. «Os que estão dormem na escuridão; não são importantes».

( excerto do livro de Jorg Blech, «Os Inventores de doenças», que remete por seu turno para a peça do escritor francês Jules Romains, «Knock ou o triunfo de medicina», estreada em 1923, e para o livro de L.Payer «Disease Mongers»(Os traficantes de doenças), editado em 1992)



Sintomaticamente o livro começa com uma citação de Aldous Huxley: « A medicina avançou tanto que já ninguém está são»



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