Deus entre os homens
09/Mai/98
Renato Janine Ribeiro
FILOSOFIA; POLÍTICA; ERNST KANTOROWICZ /AUTOR/; OS DOIS CORPOS DO REI
ao publicar "Os Dois Corpos do Rei", em 1957, Kantorowicz já escrevera obras importantes, como uma biografia de Frederico 2º e vários artigos. Mas foi com esse livro que revolucionou os estudos políticos medievais e mesmo modernos. Antes, a Idade Média era estudada para se identificar o advento do espírito leigo em detrimento do religioso -como fez Lagarde, em seu útil "O Nascimento do Espírito Leigo na Idade Média". Ou para mostrar como as realezas nacionais se expandiram, em prejuízo do poder imperial. Ou, ainda, para expor os conflitos entre o papa e o imperador. Em suma, um progresso era avaliado segundo o avanço do espírito leigo sobre a teologia, do poder civil e -quase diríamos- "nacional", em detrimento dos universais imperial e pontifício.
A novidade de Kantorowicz está já no título, que descreve sua obra como um ensaio de "teologia política". A idéia era inquietante: contra uma tradição que media o progresso no pensamento político pela sua laicização, nosso autor atribuía-o, justamente, à teologia. Mas isto se esclarece quando observamos o papel que assume, no livro, a figura de Cristo.
A grande inovação de Cristo, em face da religião judaica, foi instituir uma ponte entre o homem e o Criador. O humano e a divindade, na maior parte das religiões monoteístas, estão afastados. Com Cristo, porém, temos a rara figura de um deus que se torna homem e sofre o que há de pior em nossa condição. Isso levará, aliás, a longas discussões ao longo dos primeiros séculos da era cristã, quase caindo na heresia, sobre uma dupla natureza de Deus-Filho: enquanto deus, enquanto homem.
Ora, essa condição de Cristo virá resolver um problema decisivo na política -sobretudo inglesa- da passagem da Idade Média para a Renascença. Como entender a proeminência do monarca, homem que se destaca sobre os demais? Uma solução "convencional" estaria em simplesmente "desumanizar" o rei, divinizando-o. Assim agiram Alexandre, o Grande, e os romanos, quando proclamavam deuses os seus imperadores, por vezes ainda em vida.
Mas essa opção serve mal ao monoteísmo e a seu Deus zeloso. Será preciso, então, uma saída que a um tempo exalte o rei, dando-lhe parte divina, e o controle: porque um problema essencial na política era como controlar o monarca sem ser pela revolta e o regicídio.
A saída estará em transferir aos governantes o caráter duplo do Filho de Deus. Cristo é homem e deus. Cada rei será homem (e pois sujeito às " infirmities", isto é, a tudo o que é limitado e sofredor em nossa condição) e deus (detentor de um poder que, enquanto dure, fará dele o representante do Criador na Terra). Cada rei terá um corpo finito, físico, mas também um "corpo místico".
Analisando-se a cerimônia da coroação régia, vê-se como o que é finito no homem se torna, graças aos santos óleos, divino -melhor dizendo, torna-se crístico. Insisto: este é um meio de semidivinizar o rei. A realeza crística da Idade Média não se confunde com a doutrina -mais ambiciosa- do direito divino dos reis, que, ao contrário do que se imagina, é mais moderna, datando de Jaime 1º da Inglaterra, em fins do século 16.
Os resultados dessa cristianização do monarca são notáveis. Aliás, esse processo ficará mais claro se virmos o que sucede ao maior (em tese!) dentre os monarcas -o papa. Lembremos o que a Igreja fez para impedir que o poder pontifício ficasse em mãos incontroladas de um indivíduo ou de sua família: ela instituiu o celibato clerical.
Este, salvo acessos de moralismo bastante curtos no tempo, não significava tanto a castidade dos sacerdotes, mas sim e sobretudo a ilegitimidade de seus filhos. O problema não era fazer ou não sexo, era herdar ou não bens. Padres e bispos teriam amantes, mas, não podendo casar-se legalmente, seus filhos nunca poderiam ser seus herdeiros: assim se impedia que se transmitissem as sés, as catedrais, os mosteiros de pai para filho. Desse modo a Igreja romana desde cedo protegeu seus bens do que hoje chamamos patrimonialismo, isto é, a apropriação privada do que pertence a uma instituição.
A doutrina dos dois corpos do rei cumprirá papel análogo, mas em escala maior. Há um corpo permanente, místico, que nunca morre, o Rei com maiúscula. Há um corpo frágil, doente ou pelo menos mortal, o rei com minúscula, o monarca atual. Este último assume, mas só por um tempo, as vestes do outro (por sinal, vestes, figurinos, estátuas são decisivos nessa representação da monarquia).
O monarca atual tem amplos poderes, mas ai dele se confundir sua missão temporária com o corpo místico! Tão logo desapareça, os excessos que tenha cometido poderão ser desfeitos por seu sucessor. Isso está num preceito do direito canônico, cedo retomado pelos Estados que, ao longo dos séculos 14 e 15, sacodem a tutela pontifícia e imperial: o patrimônio da Igreja não se confunde com o arbítrio do papa, nem o "estate of the Crown", os bens régios, com os desejos do rei. Dos desmandos de um príncipe, o seu sucessor sempre poderá anular os efeitos.
A doutrina dos dois corpos do rei será, assim, a forma mais explícita de uma doutrina que tem alcance e papel europeus: a da identificação/distinção entre o cargo e quem o exerce. Por toda a parte, esta é uma preocupação. Sabem todos que os reis exageram, mas também sabem que é difícil contê-los pelos canais usuais. O direito canônico ajuda, a longo prazo, anulando os excessos, mas só depois de morto o príncipe. É preciso mais que isso. É necessário distinguir o que é da esfera pública, o que é da esfera privada -para usarmos uma linguagem mais recente.
Naquela época, é claro, não se emprega este discurso. Fala-se em "corpo místico", para definir a dimensão em que o rei se faz Rei, largando o plano da "enfermidade" (não só as doenças, mas a mortalidade), da natureza ou do mundo criado, para subir ao da graça ou do Criador. Mas no corpo místico divisa-se, de longe, o que mais perto de nós se chamará dimensão pública do poder.
Que alcance tem essa teoria tardo-medieval, que culmina na Inglaterra sob a dinastia Tudor, no século 16? Cabe indagar por que os doutrinários da época vieram a pensar o que hoje chamamos de poder público mediante o conceito de corpo místico, que inicialmente designava a hóstia, o corpo místico de Cristo. Essa raiz teológica da política moderna merece atenção, porque é um débito que fica.
Mas talvez o importante mesmo seja que esse livro teve forte sucesso, embora demorado -tardou mais de 20 anos a se tornar um "cult", porém desde os anos 80 serviu para explicar fenômenos políticos e sociais inclusive mais recentes, como a monarquia absoluta francesa ou até a mística dos presidentes de nosso tempo.
Deste ponto de vista, "Os Dois Corpos do Rei" ajudou a romper uma imagem ainda positivista da história política e das mentalidades, que propunha o progresso como vitória do espírito leigo sobre a superstição. Esse modelo teve forte impacto na universidade brasileira -e sobretudo na USP- desde a década de 1930. Para a cultura francesa republicana posterior ao caso Dreyfus, em que se inspirava, vencer a superstição era ato político fundamental.
Hoje, porém, nossos referentes são outros: podemos assim ver que o nascimento da modernidade não passou pela mera oposição entre leigo e religioso, mas que o elemento teológico foi decisivo na nova política -assim como, mostra Frances Yates em outro livro notável, seu "Giordano Bruno e a Tradição Hermética" (Cultrix), o fator mágico foi fundamental na construção da ciência moderna.
Renato Janine Ribeiro é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "Ao Leitor Sem Medo - Hobbes Escrevendo Contra o seu Tempo" (Brasiliense).
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