Cultivando como conseqüência o pluralismo epistemológico e dos valores, num clima que liberdade e ascese do trabalho intelectual, o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio Grande do Sul (IUPERJ) tem ocupado merecidamente, nas últimas décadas, uma posição singular na comunidade brasileira das ciências sociais.
O resultado recente dessa antiga trajetória consiste na emergência, no IUPERJ, de uma nova geração de pesquisadores e professores que, conciliando a acuidade, a versatilidade e o rigor intelectual, se têm dedicado à recuperação da teoria política clássica e à exploração da teoria política moderna, na busca de paradigmas universais, com funções heurísticas, predictivas e normativas.
Nos três últimos anos, quatro notáveis teses de doutorado justificaram o investimento do IUPERJ em teoria política.
Luiz Eduardo Soares realizou um esforço heterodoxo buscando substituir a leitura dominante da antropologia materialista, indi vidualista e racionalista de Thomas Hobbes - que nela surpreende a matriz do individualismo metológico, do utilitarismo e da estratégia - por uma leitura antropológico-simbólico, menos preocupada com os dilemas suscitados pela necessidade de emergir do estado de natureza e de constituir uma comunidade política ordenada, estável e predictível, do que com a possibilidade de construção transcendental de um sujeito universalizado capaz de conceber os fundamentos da obrigação política, do dever de obediência à autoridade pública legítima e, dados os limites, do direito à resistência civil. O resultado magnífico desse esforço foi a tese de doutorado de 1991: "A invenção do sujeito universal: Hobbes e a
política como experiência dramática de sentido".
Movimentando-se em direção oposta, Ricardo Lessa empenhou-se em investigar, no ceticismo gregos as implicações decorrentes, para a ação política e para a razão prática da pluralidade tendencialmente ilimitada de versões teóricas possiveis do mundo cósmico e da sociedade. O coroamento dessa investigação foi a tese de doutorado defendida por Renato Lessa em 1992, Vox Sextus: pluralidade dos mundos, estratégias cognitivas e conhecimento ordinário na reflexão política dos modernos.
Também em 1992 foi concluída a tese de doutorado de Luiz Orenstein Jogos da ação coletiva, na qual o autor trata de demonstrar, explorando o paradigma heurístico da teoria dos jogos, que a interação estratégica descrita por múltiplos jogos de soma variável do tipo dilema do prisioneiro viabiliza - desde que estes sejam disputados simultânea e sucessivamente, por um número indeterminado e não conhecido de vezes,e com variações nos ganhos - a cooperação recíproca entre os jogadores e sua conversão em equilibrio estratégico coletivamente estável. Essa possibilidade da qual não estou pessoalmente convencido, permitiria pensar na possibilidade da constituição e do funcionamento permanente da comunidade política com um minimo de Estado ou mesmo, teoricamente, na ausência dele.
Finalmente em 1993, Ricardo Benzaquem de Araújo, já reconhecido pelo sua arguta interpretação do integralismo brasileiro, produziu Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos trinta, tese de doutorado no Museu Nacional.
Enfim, ainda em 1993, a Editora Re\ume Dumará pub\icou o \ivro de Luiz El\uarl\o Soares, Os dbis corpos do presidente e outros ensaios.
Na primeira parte do livro o autor publica textos de teoria política escritos nos últimos doze anos. No primeiro e mais longo desses textos, examina as bases da desobediência legítima à autoridade pública nas teorias de Hobbes, Locke, Rosseau, Hume, John Stuart Mill e Edmund Burke. Nos dois últimos segmentos, expõe a sua versão da estrutura fundamental do argumento contratualista moderno, tal como se encontra no Leviatã, de Thomas Hobbes.
Há ainda, na primeira parte, uma cálida reflexão sobre "o lugar do sofrimento no pensamento político moderno", construída sobre a leitura comparativa, com grande acuidade, dos textol'.
el'.l'.e,nc.iail'. l\e \\Ç)\)\)e.'E., \\ "Rosseau, l\e Kant e de Bentham.
Em suma: na perspectiva de recortes temáticos específicos mas cruciais, Luiz Eduardo Soares descreve, com rigor epistemológico e sensibilidade ética, as interpretações alternativas mais relevantes do fenômeno político - o jusnaturalismo, o contratualismo, o utilitarismo, o idealismo, o historicismo, o voluntarismo institucionalista, e, em particular, a controvérsia, de que participam, acerca dos fundamentos da obrigação política, da ordem pública constiutcional e do Estado.
A segunda parte do livro reúne, além de um artigo sobre as fronteiras disciplinares entre as ciências sociais e de uma análise sobre o conflito entre as religiões populares no Brasil, quatro ensaios de conjuntura nos quais o autor, recorrendo à exploração antropológica da cultura política brasileira, desvela com notável perspicuidade fenomenológica os mecanismos psicológicos fundamentais de produção e acumulação de poder postos em curso pelo governo Conor.
O breve ensaio que intitula o livro, Os dois corpos do presidente, evoca o construto simbólico da teologia política medieval, tema clássico da obra de Ernst Kantorowics, para elucidar, por analogia com aquele construto, o processo de cuidadosa elaboração da imagem do poder presidencial, pela máquina publicitária do governo Conor, no imaginário popular.
Do mesmo modo que Cristo, o rei medie',al possuía dois corpos: um corpo físico, natural, pessoal e privado, submetido à fragilidade e à falibilidade inerentes à humanidade comum, e um corpo oral, suprapessoal e intangível que, por outro lado, personificando a esfera pública da sociedade, distinguia-se pela imortalidade e pela infalibilidade, dele derivando a autoridade e o poder do monarca. No caso Collor, o corpo místico personificava certamente a vontade virtual da população, revela pela eleição plebiscitária que consagra o Presidente.
Há, entretanto, uma diferença fundamental que atravessa a analogia e que a excelente análise de Luiz Eduardo Soares deveria ter assinalado.
Registro-a, como modesta contribuição pessoal, ao concluir a presente resenha.
A concepção. cristã medieval da monarquia distinguia nitidamente os dois corpos do rei, estatuindo ao mesmo tempo a incontrastabilidade do corpo público, moral e constitucional, e a responsabilidade comum do corpo privado, prevendo mecanismos capazes de impedir que a lógica segundo a qual se movimentava o corpo privado contaminasse a decisão e a ação do corpo moral do monarca.
Na deificação, cultivada pela mídia, do voluntarismo autocrático arrogante e da onipotência da vontade do presidente playboy, o corpo moral e a autoridade suprapessoal da Presidência, que pairavam acima do bem e do mal, foram edificados como resultado da composição e da transfiguração dos atributos que modelavam o corpo privado daquele, envolvendo condutas que
iam da psicanálise à patologia social: imaturidade, temeridade, destrutividade, no limite autodestrutividade, desrespeito à propriedade, aos direitos e à vida dos outros.
Rigorosamente, na lógica perversa da construção simbólica de poder pelo governo Collor, o corpo privado do adolescente mimado e viciado, no qual conviviam vigor atlético e raquitismo intelectual e moral, e do oligarca primitivo, que se substituiu à lei e às instituições, ocupou o lugar que deveria ter cabido à autoridade institucional e suprapessoal da Presidência. E, em seu conjunto, esse mecanismo passou a ser concebido como a modernização do Estado.
Revista Horizontes Antropológicos