Ciências Humanas e Sociais
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
Suave totalitarismo
13/Jun/98
José Luís Fiori
OS DIREITOS DO ANTIVALOR /LIVRO/; FRANCISCO DE OLIVEIRA; POLÍTICA; HISTÓRIA
O título da obra é difícil mas o texto é muito claro e não deixa lugar a dúvidas. "Os Direitos do Antivalor", além de ser uma contribuição essencial ao debate teórico e político brasileiro, é um depoimento, a fascinante história intelectual de um dissidente. Mediante oito ensaios e duas entrevistas, publicados na última década, Francisco de Oliveira percorre uma extensa agenda de assuntos relevantes, mas, ao mesmo tempo, o conjunto conta em suas entrelinhas a história de uma diáspora intelectual decisiva para a vida política brasileira dos anos 90.
O pano de fundo dessa história é conhecido. Todos sabem que em 1988 chegou ao fim da linha o movimento pela redemocratização do regime militar unido em torno da idéia de uma Assembléia Constituinte. Junto com a "constituição cidadã" renasceram as forças de centro-direita da política brasileira, implodindo a frente de oposição democrática e facilitando o giro conservador do governo Sarney.
Neste mesmo momento, noutro plano e noutro lugar, começava o divórcio político e ideológico de um grupo de professores paulistas que gostavam de ler juntos "O Capital", fundadores de um centro de estudos que ocupou lugar de destaque na frente de oposição à ditadura. O primeiro passo da separação entre eles ocorreu quando alguns, mais dotados para o exercício da "negação da negação", operaram intelectualmente um verdadeiro milagre dialético. Em muito pouco tempo e com total tranquilidade reviram alguns de seus velhos conceitos, conseguindo, com isto, reler a história recém-passada de forma a redefinir como moderna o que até então lhes parecia ser a "banda podre" do regime militar que os aposentara.
Em seguida, iluminados por estas novas idéias e orientados pelo seu "condotieri", aliaram-se com um outro grupo de professores mais jovens e na sua maioria cariocas que, durante o processo constituinte, entre uma aula e um plano econômico, e logo depois, ora vendendo ora comprando patrimônio público, realizaram o milagre ético de passar numa década perdida da condição de professores à de banqueiros solidamente articulados com as finanças internacionais. Deste casamento nasceu, como se sabe, a vanguarda "socialdemocrata" da restauração conservadora da "banda podre" do regime anterior: professores e banqueiros no lugar dos militares; ultraliberais em vez de desenvolvimentistas.
Francisco de Oliveira foi um dos poucos a perceber a verdadeira natureza dessas transformações intelectuais e políticas e a antecipar o triste fim do grupinho que gostava de ler junto "O Capital". Triste fim intelectual, rapidíssima ascensão ao poder. As razões deste divórcio aparecem nítidas no argumento em três tempos ou temas que atravessa este lançamento da coleção Zero à Esquerda.
Num primeiro momento, Francisco de Oliveira identifica na nova natureza e no destino estratégico dado aos "fundos públicos", a partir dos anos 30, e em particular depois da Segunda Guerra Mundial, a marca distintiva das lutas sociais que abriram o caminho ascendente do "modo de distribuição socialdemocrata", nos países industrializados, e do modo de articulação de interesses e acumulação de riqueza alavancado pelos estados desenvolvimentistas, em alguns países periféricos. Um fenômeno histórico datado e não uma lei de desenvolvimento progressivo e necessário da sociedade capitalista, como ficou provado pela "mudança social regressiva" implementada nos anos 80, por meio de reversão política conservadora.
Uma regressão neoliberal que erodiu, de um lado, as bases do Estado de Bem-Estar social, enquanto que, do outro lado, enterrava o estado desenvolvimentista, redirecionando o comando e a intervenção estratégica do estado sobre as formas de produção e distribuição de riqueza.
Processo simultâneo ao da desregulamentação universal dos mercados de trabalho e das relações intercapitalistas ocorrido sob a égide ascendente da hegemonia monetária norte-americana, restabelecida na primeira metade da década de 80, responsáveis em conjunto por uma espécie de "desmonte dos direitos do antivalor" ou, simplesmente, de retorno ao mundo do valor. Fenômeno que atinge a sociedade brasileira a partir de 1988, momento de inflexão política na trajetória da crise econômica deslanchada pela explosão da dívida externa e pelo subsequente afastamento do país do movimento em curso de globalização financeira.
É neste cenário que Francisco de Oliveira situa o segundo momento do seu argumento, sobre a natureza da crise de estado e do novo projeto liberal que galvaniza as elites, assume o governo e dita as linhas centrais da política econômica e social brasileira a partir de 1990. Uma crise econômica e política induzida, em última ou primeira instância, "pela conversão da dívida externa em dívida interna feita pelo próprio Estado brasileiro ao pagar o ajuste das empresas à nova ordem econômica internacional". Decorre desse fato originante o crescimento errático e as altas taxas de inflação da década de 80, mas também, e sobretudo, a paralisia econômica ditada pela inexistência de financiamento externo capaz de abrir as portas a mais uma "fuga para a frente" do velho modelo desenvolvimentista de articulação de interesses.
O estrangulamento externo da "galinha dos ovos de ouro" facilitou a rapidíssima conversão político-econômica de nossas antigas elites regionais. Faltava-lhes, entretanto, a argamassa internacional e a direção intelectual indispensáveis ao entroncamento à nova ordem econômica mundial comandada pelas finanças desreguladas e globais. Foi neste momento que surgiu e desapareceu o aventureiro Collor, como uma espécie de aperitivo para o feliz desfecho da união entre as oligarquias divididas e desorientadas sem a tutela militar e a proposta política bonapartista dos professores que liam "O Capital" atrelados ao projeto econômico ultraliberal dos professores que viraram banqueiros.
Nesse ponto, Oliveira sublinha com toda razão a continuidade fundamental, medida em termos de interesses econômicos e políticos afetados ou protegidos, entre a velha e a nova estratégia de privatização da coisa pública. Resumindo, diria que os mesmos que antes se locupletavam financiando-se com os fundos públicos e vendendo para o Estado, agora beneficiam-se vendendo ou comprando o patrimônio público graças à preservação de seus espaços de poder local junto à grande coalizão de centro-direita articulada em torno da figura do presidente Cardoso. Entre uma e outra operação, entretanto, esta regressão ultraliberal vai destruindo os fundamentos do desenvolvimento industrial conquistado pelo país nos últimos 50 anos e, o que é pior, os direitos sociais recém-consagrados pela Constituição de 1988.
O terceiro passo do argumento de Francisco de Oliveira, sem dúvida bastante original, procura explicar porque o novo projeto político-econômico ancorado numa moeda fictícia mantém juntas as elites regionais mas não logra construir uma nova hegemonia, apontando, pelo contrário e decididamente, na direção de uma situação política totalitária. Cada vez mais prisioneiro de sua política monetária, perde espaço para a realização de políticas autônomas e corta, por meio de sucessivos ajustes fiscais, os recursos destinados às políticas sociais. Como essa estratégia restringe o emprego e achata os salários, parece claro que "as classes dominantes na América Latina desistiram de integrar a população, seja à produção seja à cidadania". Quando os direitos sociais, civis e econômicos transformam-se em obstáculo à acumulação da riqueza privada, a resultante é a inevitabilidade do apartheid, companheiro inseparável do totalitarismo.
Como explicar, entretanto, a natureza aparentemente suave e ao mesmo tempo sem esperança deste novo totalitarismo diagnosticado em "Os Direitos do Antivalor"? Prolongando os argumentos de Oliveira, pode-se dizer que é porque esse totalitarismo vai sendo imposto de forma globalizada e dispensa, em princípio, o aparato de terror utilizado pelo nazismo e pelo stalinismo. Além disso, quanto mais periférico e dependente for o país, mais o totalitarismo aparece como uma determinação incontornável dos agentes financeiros responsáveis pela estabilidade monetária. Por onde vai passando o rolo compressor liberal acionando políticas de "desinflação competitiva", desregulação dos mercados e abertura das economias nacionais vai se dissolvendo também o conteúdo substantivo da vida política. Não a destrói, pelo contrário, transforma-a em mais um "negócio", organizado segundo as regras "naturais" do mercado.
Nisso constituiu-se desde sempre a essência da utopia liberal dos fisiocratas franceses ou dos filósofos escoceses. Neste sentido pode-se afirmar que chegou a hora do "liberalismo real". Enfim, a utopia dos liberais está sendo conjugada no tempo presente. O "indivíduo racional" e o "mercado competitivo" passaram da categoria de axiomas a-históricos e irreais da teoria neoclássica para a condição de princípios norteadores e legitimadores da ação estatal. O detalhe surpreendente é que neste caso a utopia não é um sonho dos desvalidos, mas a apoteose dos vencedores. Por isso não há mais expectativas nem horizontes "desejáveis", nem mesmo o do indivíduo livre e racional que se expande por todo lado, de forma cada vez mais violenta. A utopia liberal já é um fato, absolutamente distante e impotente do ponto de vista da miséria e da esperança dos povos.
Resta a seguinte questão: por que Francisco de Oliveira ficou de fora da incrível saga político-intelectual que levou um grande amigo seu à Presidência da República? O que já se sabia é que ele nunca havia sido partidário da "dupla ética" indispensável para transformar-se em financista social-democrata com o salário de professor da USP.
O que fica claro com o livro é que ele tampouco poderia acompanhar a elasticidade intelectual e dialética dos colegas, que seguem considerando socialdemocrata ou de centro-esquerda um governo dedicado à aplicação do programa thatcherista em estado puro e sem peias, na segunda sociedade mais desigual do planeta e de mãos dadas com o que há de mais arrogante, antigo e corrupto na sociedade brasileira, um verdadeiro desacato à inteligência e ao bom senso das pessoas sejam elas de esquerda, de centro ou de direita, dá no mesmo. Bravo Chico.
José Luís Fiori é professor no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
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