Ciências Humanas e Sociais
O Universo do indistinto - estado e sociedade nas minas setecentistas (1735-1808)
André Roberto Machado
Bolsista do PET/CAPES - História/USP
SILVEIRA, Marco Antonio. O Universo do indistinto - estado e sociedade nas minas setecentistas (1735-1808). São Paulo, Hucitec, 1996.
Interpretar a sociedade mineira a partir do seu cotidiano, ter como ponto de partida os referenciais próprios do objeto estudado, foram algumas das balizas que guiaram Marco Antonio Silveira neste trabalho.
Partindo sempre do geral para o particular, Silveira insere a região das Minas no contexto de preocupações das elites do século XVIII. O Autor demonstra que a "Ideologia da Colonização" trouxe consigo o modelo civilizador, o qual bateu às portas das Minas importado pelos elementos mais prestigiados dessa região, preocupados com esta sociedade tão inclinada aos desvios.
Desta situação primeira, Marco Antonio Silveira avança a fim de refletir sobre as relações de choque e adaptação entre o modelo importado e a realidade quotidiana das Gerais. O Autor preocupa-se com as variantes decorrentes da absorção e remodelamento, promovidas individualmente e relativamente autônomas, da cultura. No estudo do cotidiano esta cultura, suas transformações e permanências, é contemplada permitindo a aproximação entre a Antropologia e a História com a valorização da "experiência humana", no sentido dado por Edward Thompson.
Processos-crimes, ações cíveis e cartas particulares compuseram a maior parte das fontes primárias utilizadas. Trata-se de um rico material, cheio de pormenores amplamente explorados pelo autor, que conduz o texto num ritmo intimista, valorizando sobremaneira o papel desempenhado pelos homens, mesmo os pertencentes a camadas menos abastadas e de poder de influência individual menor nas esferas de decisão.
Foram estes homem que fundaram nas Minas uma sociedade que experimentaria uma situação singular em relação às outras possessões do Império Luso na América. Aqui, o ouro promoveria uma dinâmica que resultaria numa sociedade cuja extrema fluidez tornaria mais flexíveis os estreitos caminhos do estamento. Enquanto as elites queriam "civilizar" atos e deixar as "coisas em seus devidos lugares", esperando daí uma clara distinção entre os homens, o cotidiano oferecia uma realidade diversa. A mercantilização, a importância central do crédito e alta urbanização para a época, resultaram em elementos que problematizaram o contexto, obrigando uma reconsideração a respeito da validade das dicotomias Senhor/Escravo, Nobre/Plebeu, como modelos explicativos da realidade das Minas.
As Gerais eram o "Universo do Indistinto". Mais que título de obra, esta expressão reflete os resultados obtidos pelo estudo. Numa sociedade onde todos desejavam ser fidalgos, os elementos de distinção eram banalizados por seu uso pelos indivíduos das camadas inferiores. Em pleno vigor do escravismo, negros cativos tinham grande mobilidade espacial, alguns trabalhavam livremente, constituíam família e adquiriam bens como casas e por vezes a própria liberdade. A estrutura social permitia que alguns escravos tivessem seu "ir e vir" mais desobstruído que muitos homens livres pobres. Ao mesmo tempo a pobreza da maioria dos negros, mulatos e pardos, devolvia-lhes ao limbo. Como se vê a região mineira não pode ser entendida num único golpe, a risco de se perder aspectos fundamentais.
Dentro deste contexto perturbador, Marco Antonio lembra-se também de elementos desprestigiados desta sociedade. Numa "sociedade de homens" a família patriarcal foi artigo para poucos, tendo que conviver lado a lado com famílias dirigidas por mulheres que muitas vezes reuniam à sua volta inclusive agregados. Eram também comuns matrimônios de corpos e domicílios separados, o que denota a grande mobilidade das mulheres, sobretudo as negras, que aliás respondiam por grande parcela da população dedicada ao pequeno comércio. Ao mesmo tempo e sem necessariamente contradizer o que já foi indicado, muitas mulheres eram vítimas de violência "dos seus homens", motivados a salvar a honra e exigir reciprocidade. Aliás numa sociedade onde a palavra era capital a honra merece destaque, sendo a violência uma linguagem adequada à busca de distinção. Lavar a honra com sangue, nas Gerais podia ser uma forma de virtude.
Esta violência generalizada era favorecida por um Aparelho Judicial moroso, corrupto e extremamente caro para grande parcela da população. "As demandas são caras e incertas", era um pensamento comum que refletia o alto risco de buscar a justiça e o pequeno retorno advindo dela. Numa população em que as noções de direito estavam na mente, desde a elite até as classes marginalizadas, era necessário encontrar uma saída que desafogasse este sentimento de impotência.
Vale dizer que não foram apenas os problemas relacionados à honra que serviram de motor para a instalação de uma sociedade marcada pelo conflito. Marco Antonio relativiza a importância das atividades mineradoras e revaloriza o papel do comércio, apoiado pela documentação levantada. É lógico que suas fontes e a natureza dos seus estudos não permitem dar uma versão definitiva sobre os papéis de cada atividade das Gerais, o que Silveira tem o cuidado de admitir. Contudo, é possível sinalizar para um universo no qual a mineração não era a ocupação que absorvia o maior contigente de mão de obra entre os habitantes.
Isto posto, o papel do mercado interno sobressai e junto com ele a importância dos comerciantes. Em conjunto com esta realidade e os problemas de uma circulação ineficaz, prejudicada pela escassez de moeda, as Gerais tornavam-se um lugar onde o crédito era fundamental. Todos deviam a todos e ser credor era uma forma de exercer poder, uma variante do prestígio patrimonialista luso. Boa parte dos mineradores estava nas mãos dos comerciantes, seus credores, gerando aqui mais um foco de tensão. O grande poder dos mercadores era visto como algo negativo pelos memorialistas que viam nesta categoria social um grupo guiado pela ambição, desenraizado e incapaz de buscar o bem comum, objetivo último do Absolutismo Português.
O avanço dos comerciantes e a bancarrota dos antigos senhores definia-se para esses memorialistas como demonstração de um estado de decadência. Assim diziam, pois não enxergavam nesta sociedade o que Silveira chama de aluvionismo social. Segundo ele, o desenvolvimento das atividades nas Gerais teve ritmos diferentes o que tornava possível que o comércio tivesse esplendor em pleno esgotamento das minas. A fluidez desta sociedade fazia com que os movimentos fossem rápidos e possibilitassem que a distinção tivesse diversos referenciais. "Deixar tudo em seu devido lugar", como Silveira afirma que desejaram até mesmo os Inconfidentes, não era tarefa fácil de realizar-se naquelas Minas de ruas tortas, repleta de aclives e declives, que faziam os eruditos portugueses suspirarem pelo urbanismo do Velho Mundo. Neste lugar, valores decantados por europeus como a cortesia perdiam a força em meio a eterna "dança das cadeiras" e a pequena visibilidade de elementos distintivos.
Nesta Gerais onde um negro cativo podia perturbar um Senhor de Escravos por uma dívida não paga, ao ponto do último angustiar-se, criou-se um universo particular que resistiu à ambição metropolitana de o subjugar completamente e fazê-lo seu prolongamento. Aqui o processo civilizatório misturou-se ao patrimonialismo luso, ao escravismo e à miscigenação criando algo extremamente particular. A isto Silveira deu o nome de o Universo do Indistinto.
Revista de História - USP
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