Milton M. Do Nascimento
não é sempre que temos a oportunidade de ler e sentir o prazer da leitura, como se estivéssemos ouvindo ao pé de uma árvore as belas histórias de um amigo já velho, carregando consigo a experiência de um século. Foi assim que me senti ao ler esses dois últimos livros de Bobbio.
A temática da reflexão sobre os intelectuais, sobre seu papel, suas responsabilidades etc. ganha aqui uma clareza extraordinária, principalmente porque esse velhinho irascível ou iracundo, como gosta de se ver, com seus quase 88 anos, ao falar dos intelectuais, traça o seu próprio perfil, olha-se no espelho e narra sua própria experiência.
Quanta simplicidade nos textos que tratam da velhice em "O Tempo da Memória"! Mesmo o que nos parece banal, ganha ali um vigor e uma dimensão novos, como nesta passagem: "O tempo da memória segue um caminho inverso ao tempo real: quanto mais vivas as lembranças que vêm à tona de nossas recordações, mais remoto é o tempo em que os fatos ocorreram. Cumpre-nos saber, porém, que o resíduo, ou o que logramos desencavar desse poço sem fundo, é apenas uma ínfima parcela da história de nossa vida. Nada de parar. Devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver". A memória torna-se o caminho para a construção da própria identidade, isto é, a de um intelectual por vezes acusado de paradoxal, de não tomar partido em questões políticas nas quais se exigia que se assinassem manifestos de apoio, ou de não aderir a candidatos aos quais se esperava que todo intelectual deveria aderir e assim por diante.
Herdeiro da tradição ilustrada do século 18, mas sem o otimismo de um Condorcet ou de um Voltaire, Bobbio não faz uma análise sociológica ou história dos intelectuais, mas procura estabelecer o que deveriam ser ou fazer. Essa distinção fundamental entre o dever ser da atividade intelectual e a condição histórica e sociológica de sua inserção na ação é fundamental para a compreensão da trajetória de Bobbio.
Não podemos separar -por isso recomendo a leitura conjugada das duas obras acima referidas- a reflexão de Bobbio sobre os intelectuais da visão que ele tem de si mesmo e das confusões que seus críticos fazem ao tratarem do trabalho dele como intelectual. E tais confusões advêm da superposição que muitos fazem entre o fato e o dever ser, dois níveis do discurso inteiramente distintos. "Digo isso porque a maior parte dos discursos sobre os intelectuais que lemos dia após dia nos jornais e revistas são discursos prescritivos, que exprimem os desejos e as esperanças de quem os faz, mas são apresentados como discursos analíticos, como discursos sobre o que os intelectuais efetivamente fazem, e portanto são equivocados de cima abaixo".
Isso é importante também para a caracterização dos diversos tipos de intelectual. Bobbio define-se como um intelectual dualista, isto é, como aquele que opera sempre a distinção entre o fato e o direito, entre a análise e a prescrição. Os que sobrepõem esses dois níveis seriam os intelectuais monistas, mas é fácil perceber que tanto numa categoria como na outra existem vários tipos ou matizes. Quando Bobbio trata, em "O Tempo da Memória", dos grandes pensadores que são suas referências constantes, indica-nos, dentre os dez primeiros, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Hegel, considerados por ele como os "maiores filósofos políticos da era moderna", e Croce, Cattaneo, Kelsen, Pareto e Weber, os contemporâneos mais importantes. Exatamente aqueles que sempre tomaram o plano do dever ser como indispensável ou como condição de possibilidade para se observarem e se pensarem o fato e a história.
Quando Bobbio se autodefine como iluminista pessimista, sua referência poderia ser Rousseau, também acusado de contraditório, de inconsequente, de estabelecer uma falta de sintonia entre a teoria e a prática. O outro autor, aliás preferido de Bobbio, é Hobbes. Tanto este quanto Rousseau, quando tratam do Estado, não se referem a um Estado determinado, mas aos princípios que devem regular o seu bom funcionamento. Para eles, outra coisa é a política doméstica dos Estados em particular, mas cuja compreensão não pode ser feita sem o recurso aos chamados "princípios do direito político".
A figura do intelectual apresentada por Rousseau, tomando a si mesmo como referência, é a daquele que, acima de tudo, possui um compromisso com a verdade. E esse trabalho, segundo Bobbio, exige paciência, consideração de vários aspectos do problema, os prós, os contras, com frequência reformulação de certos pontos tomados como certos, requer também a dúvida metódica e o espírito de investigação constante. Quando o filósofo analisa os fatos, dessa maneira, sempre à luz dos princípios do direito, ele não pode curvar-se aos imperativos da história ou da realidade factual, objeto de sua análise, mas pode interrogá-la, questioná-la e sobre ela emitir um juízo de valor. O compromisso com a verdade não pode significar fuga ou escamoteamento da realidade. Pelo contrário, é esforço de aproximação contra as ilusões do dado empírico.
A pergunta a que Bobbio tenta responder de maneira nova, isto é, a do sentido da ação do intelectual, daquele que não trata de coisas, mas de idéias, não lida com máquinas, mas com símbolos, aparece aqui também reformulada já por esses pressupostos. O que significa, por exemplo, pedir que o intelectual assuma uma determinada posição política, ou que ingresse num partido político? Simplesmente que ele coloque seu instrumental de reflexão a serviço de alguma coisa que tenha uma apelação imediata. Pede-se, com frequência, o aval dos intelectuais para ações políticas determinadas e se eles se recusam a fazê-lo, são tachados de "alienados" que não querem deixar a torre de marfim e tantas coisas mais.
Essa exigência de engajamento dos intelectuais, segundo Bobbio, não pode interferir na sua função específica que envolve aquele compromisso com a investigação ponderada, com a crítica. O mergulho na ação, por outro lado, não permite a reconsideração. Para o homem de ação, ponderar os prós e os contras pode dar a entender insegurança, falta de coragem, falta de programa e, consequentemente, provoca a perda do poder.
O poder dos intelectuais não é um poder político. No plano das idéias, a reformulação constante dos rumos da teoria significa espírito de investigação atenta. A crítica deve provocar um fervilhamento de idéias novas, significa criação constante. Essa é a função política dos intelectuais. Seu poder é acima de tudo moral e se faz exercer por persuasão, nunca por correção.
Não nos esqueçamos de que Bobbio foi também um homem de ação, na resistência contra o fascismo. Seu compromisso com a liberdade, com a igualdade, que o caracteriza como um homem de esquerda, um socialista liberal, fez dele um militante contra todas as formas de totalitarismo. Nunca admitiu a divisão européia entre o leste e o ocidente, simbolizada pelo muro de Berlim, combateu o stalinismo, mas soube admirar Gramsci e manteve um diálogo constante com os intelectuais do Partido Comunista italiano, o mais liberal dos partidos comunistas europeus.
A postura de Bobbio assemelha-se à de Voltaire no combate ao fanatismo. "A quem um dia me perguntou com que trecho de meus escritos eu me definiria, apontei a conclusão do prefácio de 'Italia Civile': 'Da observação da irredutibilidade das crenças últimas extraí a maior lição de minha vida. Aprendi a respeitar as idéias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, discutir antes de condenar. E porque estou com disposição para as confissões, faço mais uma ainda, talvez supérflua: detesto os fanáticos com todas as minhas forças' ".
Milton Meira do Nascimento é autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp/Nova Stela).
Folha de São Paulo
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