O saci branco
PAULO VENÂNCIO FILHONuma terra triste vivia um povo sedentário, aí chegou o poeta Blaise Cendrars e botou o pessoal para viajar. Assim parafraseado, o início de ''Retrato do Brasil'', de Paulo Prado, um dos grandes amigos brasileiros de Blaise, poderia bem ilustrar o que foi a presença deste descobridor moderno do Brasil.
Tal qual uma figura de Saci Pererê branco, europeu, moderno, vestido de terno e gravata, sem o braço direito que perdeu na Primeira Guerra Mundial e, à guisa de pito, um toco de cigarro sempre pendente do canto da boca, Blaise não parava quieto. Também, como o Saci, parecia viver dentro de um rodamoinho ou provocar rodamoinhos a sua volta. Foi o que fez aqui com os nossos pioneiros da Semana de 22. E não só aqui; Blaise influenciou artistas de duas Américas. Nesse ir e vir é que se prolongaram amizades, firmou-se uma influência, estabeleceu-se um estímulo intelectual e artístico recíprocos. Blaise Cendrars foi uma ponte de mão-dupla Brasil-Europa, Paris-São Paulo, passado-futuro.
Cendrars foi um descobridor recente, mas de uma época ainda de muito desconhecimento e de preconceito nosso contra nossas coisas. É o que os paulistas testemunharam: ''Cendrars exultava, constantemente comunicava-lhes as novidades que eram inéditas para os paulistas também: o ver como novo, de repente, aquilo que temos na calçada de nossa rua, na esquina mesma de nossa casa; a sensação de fazer turismo olhando com olhos novos a sua própria terra''. O poeta franco-suíço não só nos descobriu, como também foi um dos que nos colocou a par de um novo mundo: o da arte moderna européia.
Aqui faz conferências, visita as fazendas de café do interior paulista que inspiram seu livro ''A Metafísica do Café'', além de ter um encontro bastante inamistoso com o futurista Marinetti. Incentiva a famosa viagem dos modernistas paulistas a Minas, passando antes pelo Carnaval do Rio. Dessa viagem Tarsila reconheceu mais tarde que, ''sem premeditação, sem desejo de fazer escola, realizei, em 1924, a pintura a que chamaram Pau-Brasil''. Tudo leva a crer que a presença de Blaise é decisiva neste novo modo de ver as coisas brasileiras, presentes e passadas. É exatamente o que nota Brito Broca: ''O que merece reparo nesta viagem é a atitude paradoxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, o que eles vão mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, seus casarões coloniais e imperiais, numa paisagem tristonha, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. Parecia um contra-senso apenas aparente. Havia uma lógica interior no caso''. Moderno era o ponto de vista, ''o genuinamente brasileiro e, ao mesmo tempo, o exótico, que atraía o alegre grupo de excursionistas'', desses ''precursores brasileiros do turismo doméstico''.
Nos EUA ou no Brasil, Blaise era o mesmo, ávido, irrequieto, curioso, vibrante. Esteve na América antes e, quem sabe, trouxe algo de lá. A imagem que Blaise suscita é a de estar sempre à vontade, nunca o desconforto, o estranhamento. Era um viajante nato, sempre em trânsito, adaptável a qualquer situação. Viajar significava provavelmente o modo de tornar sua vida compatível com sua poesia. Rápida, sintética, instantânea.
A Utopialândia, como chamou o Brasil, era um país transportável para onde estivesse. Se o mundo não era mais pequeno naquela época, a viagem ainda tinha algo do prazer aventureiro. Este é o sabor propriamente exótico de seus poemas _a realidade já captada na velocidade da máquina fotográfica que o turista traz a tiracolo. Seus versos têm o ritmo frenético-fotográfico do turista disparando sua câmera a todo instante, sem parar. Antecipava assim uma necessidade que foi mecanicamente se banalizando com o tempo. A máquina fotográfica tranquilizou a inquietação do turista que Blaise traduzia em seus poemas. No poema-instantâneo _o poema-registro, o poema-observação_, no poema-reportagem; em todos os modos poéticos de registrar as impressões do momento. Não por acaso um livro seu se intitula ''Kodak''.
Agora que a obra de Cendrars vem sendo redescoberta pelo mundo afora, esta nova edição de um estudo exemplar, cuidadosa e repleta de reproduções de desenhos de Tarsila, de documentos, de fotos, servirá também para melhor conhecer o personagem fascinante que foi este poeta. Aqui ele está revelado do jeito que talvez gostasse: à vontade e próximo de nós. Reconstituiu o testemunho de um indivíduo entre nós nos anos 20; algo como as ''Memórias Sentimentais Brasileiras de Monsieur Blaise Cendrars''. Traduz no tom, na forma como organiza os depoimentos, na escrita precisa e econômica, um painel de uma época e, mais do que isso, o início da experiência moderna no Brasil, por meio de um personagem decisivo. Pois, se Cendrars viu o Brasil com olhos modernos, aqui ele é visto, apropriada e criteriosamente, com olhos brasileiros.
D.H. Lawrence, outro grande e inquieto viajante, que também andou por alguns dos mesmos lugares e na mesma época que Cendrars, embora não tenha conhecido o Brasil, terminava suas cartas invariavelmente da mesma maneira: ''This place is no good''. Não seria nunca o caso de Blaise: ''O? aimeriez vous vivre?'', perguntaram-lhe certa vez. ''Partout, partout, à la fois,'' respondeu. Em todos os lugares, em todos os lugares. E aí o Brasil tinha um lugar especial.
Paulo Venâncio Filho é crítico de arte e professor de história da arte na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Folha de São Paulo
loading...
Presença francesa no Brasil Álvaro Faleiros Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brazil PERRONE-MOYSÉS, L. Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções....
Bonita sinhá cubista Sergio Miceli Vou fazer um apanhado sumário do trabalho de Léger entre 1919 e 1923, para que o leitor possa ajuizar a modalidade de impacto e influência a que esteve exposta Tarsila de Amaral durante suas estadias em Paris na...
Trinta anos depois de sua morte, o poeta continua sendo o mestre da modernidade (efêmera) Trinta anos é a idade da morte de Vinicius de Moraes, o poeta carioca que inundou de lirismo a literatura e a música popular brasileira e que...
Ode ao burguês Eu insulto o burguês! O burguês-níquel o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as...
Alguns livros disponíveis, e seleccionados por nós, da editora &etc, edições culturais do subterrâneo A editora &etc mantém, desde sempre, uma postura que nunca é demais de realçar no nosso panorama editorial e literário ao não soçobrar perante...