Ciências Humanas e Sociais
O massacre dos gatos
Silvia Maria Tommasini
Pós-graduanda na área de História Econômica no Departamento de História FFLCH/USP
DARNTON, Robert - O massacre dos gatos. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
O tipo de dominação ocidental, em expansão-crescente, nos tem imposto uma padronização de estilo de vida e de comportamento, necessários para o seu exercício. Esse avanço vem restringindo os espaços de experiências (enquanto ações dissonantes e transformadoras), e tornando a viabilidade das resistências, difícil. Acredito ser essa a tendência geral de nossa época, onde o elemento padronizador - a mercadoria fetiche - mercantiliza todas as atividades humanas.
Tomemos a nossa área profissional como exemplo. Pressupomos que a pertinência deste ou daquele tema ou objeto de pesquisa histórica deve ser dado por critérios estabelecidos pelo corpo de especialistas, contudo, até que ponto poderemos resistir às determinações da indústria cultural, que tem o poder de nos impor temas e objetos de pesquisa, segundo o critério mercadológico?
Quanto mais sentirmos esta ameaça, mais nos voltamos para a produção historiográfica atual, que visa buscar justamente o que revela o outro o heterogêneo, o múltiplo de possibilidades, e o singular das experiências.
Pois, para fazer frente a este avanço, trata-se, hoje. de tornar visível a diversidade de resistências e possibilidades de experiências dissonantes, engolfadas pela fala única do que foi memorizado como sendo "a" História, padronização generalizante de vivências. É nesse sentido que a historiografia do cotidiano aparece como uma historiografia de resistência ao processo de homogeneização cultural.
Na verdade, a busca do que é específico de determinado local histórico é uma prática inscrita na tradição historiográfica (1).
No final do século passado e início deste, por exemplo, o debate/embate na historiografia apontava para duas direções: - uma (L'Anglois/Seignobos). recomendava a acuidade de leitura das fontes para a revelação do que era específico do contexto entendido: recomendava, para ajudar a minuciosa leitura do historiador, o uso de instrumental de outras áreas de conhecimento (psicologia, etnografia, filosofia), inferindo a necessidade e ampliação dessas outras áreas para auxílio e desenvolvimento do conhecimento histórico. Essa tendência, porém, parece ter sido sufocada pela outra, no embate travado.
A outra tendência é aquela que lança a discussão sobre a "Filosofia da História" (Vico, Herder), que gera uma produção do tipo "História Universal", globalizante, totalizante, onde as especificidades de cada "cronotopo" desaparecem. Com a cristalização dessa tendência, os "grandes temas" que engendravam a história do progresso linear da humanidade, tornaram-se o critério da produção historiográfica idônea.
Setores da "Escola dos Annales" começam a romper essa hegemonia, ouvindo as sugestões de Marc Bloch e Lucien Febvre, no sentido de proceder à leitura visando o decifrar das mentalidades.
Desdobramentos destas tendências não totalizantes, a história do cotidiano, inovando na escolha de temas e objetos que denotam sua preocupação em buscar o que foi excluído da produção historiográfica anterior. Abre, assim, o debate para a reformulação das abordagens apropriadas para o "cercar" dos indícios que nos aproximam dos modos de ver o mundo do passado.
Além disso, rompe com a tradição historiográfica num ponto chave -a temporalidade. Negando a linearilidade progressiva produzida pelo paradigma científico abstrato do positivismo, o tempo histórico ganha uma dimensão dialógica, no sentido benjaminiano (mônadas). O historiador, agora, é chamado a discutir com experiências de vida representadas nas tradições que surgem e desaparecem, retornam, permanecem, etc., sem a obrigação de enquadrá-las numa seqüência evolutiva determinista. Mais que um retornar na "linha do tempo", a nova abordagem passa pela construção monádica (unidades de significações), isto é, passa pelo diálogo/interação de experiências historiador/agentes do material abordado, suscitado pelas experiências do presente.
Dentre a produção atual da História do Cotidiano, destacamos "O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa", expressão exemplar das angústias e incertezas, mas também da ousadia do despojar-se de um instrumental teórico inoperante, para o tipo de produção pretendida, que nos dá a dimensão da riqueza desta busca de novos caminhos.
Contudo, antes de comentá-lo, é fundamental que nos reportemos a outro autor, situado em outro contexto mas que, também contestando vias viciadas de abordagens, herdadas de uma tradição racionalista, que não davam conta de seu objeto, produz uma obra chave para o incremento da produção da história do cotidiano. Trata-se de Mikhail Bakhtin, de "A cultura popular na Idade Média e no renascimento - o contexto de Francois Rabelais", o decifrador do riso popular, do humor grotesco, enquanto atitude de afirmação cultural, na Idade Média e Renascimento.
Historiador da cultura e linguística, Bakhtin, através de sua abordagem da obra de Rabelais, nos revela este lado da experiência humana - o riso popular - , que permaneceria silencioso se dependesse das abordagens tradicionais, que enfocariam somente o lado "sério", formal, daquele contexto. Bakhtin rompe duplamente com noções viciadas, tanto na literatura quanto na historia; noções herdadas de duzentos anos de iluminismo racionalista, que impedem a visão daquilo que "foge à razão": ? "...A concepção estreita do caráter popular e do folclore nascido na época pré-romântica e concluída por Herder e os românticos, exclue quase totalmente a cultura da praça pública e o humor popular, e toda a riqueza de suas manifestações". (2)
Manifestações onde o grotesco, a burla da norma, através do riso exagerado/regenerador, servem para a ritualização do cotidiano e o exorcismo das imposições da cultura hegemônica. Nesses "rituais do cotidiano", sem traço algum do mágico, vislumbramos o transbordar dionisíaco das manifestações populares, que fustigam Apolo.
Mas, é sobretudo na sua formulação sobre a linguagem onde está a lição que, nós historiadores, podemos extrair de Bakhtin - a linguagem é uma realidade dialógica apreensível na interação sócio-verbal. Há, portanto, uma circularidade cultural via linguagem, que destrói a concepção de uma cultura popular estanque e isolada da cultura de elite, pois:
"...A) a palavra, signo ideológico por excelência, é indicador sensível da transformação social; carrega um sentido de vida universal;
B) manifestações humanas se exteriorizam, se esclarecem pelas palavras;
C) todas as camadas sociais servem-se do mesmo idioma; nos signos, o confrontamento de valores contraditórias - expressão do embate entre eles;
D) cada época, cada grupo social tem seu repertório das formas/discursos (falas) sócio-ideológicas;
E) formas de sensibilidade coletivas não são decorrentes, mas explicáveis como simples necessidades biológicas ou decorrentes da estrutura sócio-econômica. Representam uma complexa relação dialética denominada 'visão de mundo'...:
Bakhtin, ao nos oferecer essa trilha, mostra como leu a leitura que Rabelais fez da cultura popular de sua época.
É a partir desse enfoque, da linguagem enquanto o meio através do qual transparecem as estratégias de vida dos agentes históricos, que reconhecemos Bakhtin em Robert Darnton. É essa noção de leitura que perpassa toda sua obra. Propõe-se a desenvolver uma história etnográfica, ou seja, uma história preocupada em desvelar a formação de um ethos, do ser no mundo, de determinado grupo humano: "...O historiador etnográfico estuda a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo...", "...Como se viravam...", "e tenta descobrir sua cosmogonia", "como era a estratégia de vida dessas pessoas". (3) É um tipo de história que está em franco diálogo com a Antropologia; com ela Darnton aprendeu a desprezar a linha que demarca a fronteira entre mithus e logus (Levi Strauss), pois é através da organização dos materiais que dispõem de suas culturas que os grupos humanos constroem sua representação de mundo.
Assim, provérbios, rituais, poemas ou tratados filosóficos, que não conseguimos entender, que para nós são "zonas de opacidade", "podem ser o fio condutor que nos levará a uma pitoresca e maravilhosa visão do mundo". É na língua, enquanto local privilegiado dessas estratégias de vida, que podemos perceber as acomodações e os desconfortos de visões de mundo em latência ou de letargia, em diálogo ou embate. Nela a fronteira que organiza os modos de pensar, "...Para além da fronteira idiomática, a loucura..." (3)
Como os grupos e os indivíduos apoderam-se, manipulam, criam, recriam, adaptando/adaptando-se, readaptando/readaptando-se, da utensilhagem simbólica que dispõem de sua cultura? Essa parece ser a questão básica da história etnográfica.
Extremamente cauteloso em não "cometer" generalizações, Darnton reconhece a idiossincrasia na história; nega-se a falar do francês típico, ou do camponês ou burguês típicos.
É preciso acompanhar o jeito que Darnton procede, como faz perguntas (nelas, sua riqueza), quais instrumentos e de que disciplinas lança mão para conversar com o material que selecionou, e quais "inventa".
Então, percebemos alguns níveis:
1. O selecionar de material - objetos e temas que possam ser usados na questão da história etnográfica (ou cultural, ou das mentalidades, ou social) - que sirvam a nossa aproximação com "visões de mundo" desaparecidas;
2. A natureza do "enigma" levá-lo a recorrer ao instrumental oferecido pelas outras disciplinas ou correntes historiográficas;
3. Desse "experimentar ferramentas", a destreza do historiador no seu manuseio - e, o historiador "manuseia ferramentas" formulando perguntas.
Vejamos como esse autor abordou os contos populares da tradição camponesa da França dos séculos XVII/XVIII: sua principal questão é delimitar através desses contos um ethos próprio do "camponês francês" daquele período.
Começa por refutar os instrumentos que considera inadequados para a tarefa, explicando o porquê:
1. A psicologia, que trabalha os símbolos contidos nos contos, baseada em uma ou algumas versões, sem preocupar-se em historicizar os símbolos, ou esgotar possibilidades. Argumenta que a psicologia, ao agir assim, sem o "rigor" do historiador, desenvolve concepções generalizantes e a-históricas de como a "alma humana" lida com os símbolos;
2. Reconhece no folclore um grande instrumento, pois nos fornece a origem e a classificação de tradição oral (tipos de contos), que nos facilitam o trabalho de comparação. Mas refuta dentro do folclore tendências que, sob influência junguiana, divisam a partir do arrolar das semelhanças encontradas na estrutura dos contos de regiões distantes entre si espaço/temporalmente, arquétipos denotativos de um presumível "inconsciente coletivo".
É através da comparação de versões dos contos que Darnton mostra como se utiliza do folclore para chegar a um ethos próprio francês, destacando nas versões francesas elementos como a avareza, o engodo, a velhacaria, o fingimento, como estratégias de vida, de sobrevivência, que emitem um "tom" que caracteriza o camponês francês.
Comparando com versões de outros povos notou, por exemplo, que enquanto os contos ingleses invocavam musicalidade e fantasia, os alemães, terror e fantasia, nos italianos destaca-se o elemento burla, etc., no francês, a domesticidade e o humor são enfatizados, onde a "esperteza cartesiana" (astúcia e intriga) é a tônica.
Até aí o folclore lhe serviu. Mas essa constatação não lhe pareceu suficiente para desvendar a visão de mundo específica desse grupo.
Atento à produção da história das mentalidades (Annales), que investiga possíveis vínculos participação popular/eventos políticos, Darnton discute e pergunta, discorrendo sobre o senso comum: - "Da mesma maneira que não se pode relacionar os contos franceses a eventos políticos, não se deve diluí-los numa mitologia universal atemporal. Pertencem a um terreno intermediário entre os séculos XV e XVIII.
Este espaço de tempo pode parecer vago para quem exige que a historia seja precisa. Mas a precisão é inadequada, ou impossível, na História das Mentalidades, "...Visões de mundo que não podem ser descritas da mesma maneira que eventos políticos, mas não são menos reais. A política não poderia ocorrer sem que existisse uma disposição mental prévia implícita na noção de senso comum.
"O próprio senso comum é uma elaboração da realidade que varia de cultura para cultura. Longe de ser invenção arbitrária de uma imaginação coletiva, expressa a base comum de uma determinada ordem social. Portanto, para reconstruir a maneira como os camponeses viam o mundo neste período, é preciso perguntar o que tinham em comum, que experiências partilhavam na vida cotidiana de suas aldeias". (4)
Para a satisfação de suas perguntas, Darnton recorre à produção da História Social (Ladurie, P. Bois, Pierre Goubert), sempre alertando para as generalizações dessa produção, mas utilizando os seus dados.
Então, usando os dados demográficos, dados do tipo de exploração servil específicos da França, dados sobre a ingestão média de alimentos, densidade populacional, faixa etária para o matrimônio, uso da terra, a produtividade e a técnica do período, etc., Darnton permitiu-se fazer algumas ilações, cuja "comprovação" é dada pela evidência. Como não reconhecer o "ogre" no "bonhomme" pequeno proprietário de terras, pólo local gerador de funções, já que era ele que exercia a exploração direta dos camponeses sem terra. Como não reconhecer o eterno aventurar-se nas estradas em busca de boa-sorte e fortuna dos contos, no movimento de mendicância que entulhava as entradas francesas? E o eterno desejo, expresso nos contos, de comer, comer, comer - o sonho máximo - com a mais escorchante fome?
Darnton reconhece nos contos verdadeiros "guias de sobrevivência", que comunicam uma maneira comum de elaborar experiências; "não lidam com abstrações, mas mostram como o mundo é feito e como podem enfrentá-lo. Nos estratagemas para satisfação dos desejos (comer, vingar-se do 'grandes', etc.)", a visão de mundo peculiar do francês camponês do século XVII-XVIII: "...O mundo é formado de velhacos e tolos -o velhaco tem mais chance de sobrevivência".
Cercadas as questões da especificidade "camponês" e "francês", o autor nos remete a Bakthin e sua noção de circularidade cultural intergrupais.
Para isso evoca Perrault e a sua adaptação dos contos da tradição oral camponesa para o gosto da elite. Mas ao fazê-lo nos revela o elo real desse intercâmbio: os costumes que ligavam estes estratos sociais distintos nos séculos XVII e XVIII, especialmente a prática habitual das elites de entregarem sua prole aos cuidados de nutrizes camponesas na primeira infância. Aí está a fonte onde Perrault bebe - a ama de seu filho.
Nesta circularidade cultural imprimiu-se uma mensagem que ficou inscrita no "jeito francês de ver o mundo", pois ultrapassou os limites dos contos populares, as fronteiras de classe e até épocas. "Sobrevive na linguagem corriqueira, bem como na maneira aprovadora de como um francês chamará outro de "Mechant e Malin" (malvado e astuto) - a França é um país onde é bom ser ruim". "Isso é um legado dos antigos camponeses para o cotidiano comum".
Assim, apesar de privilegiar e até propor uma convergência do fazer da história como da antropologia (ver como o nativo vê), notamos sempre presentes, na obra de Darnton elementos Bakthinianos. O ensaio sobre o episódio do "massacre dos gatos na rua Saint Severin" é exemplar: - deparando-se com uma piada como "zona de opacidade", Darnton investiga os mitos e os ritos concernentes à tradição artesã com o auxílio de ambos os instrumentos - da antropologia e de Bakhtin, já que foi este quem primeiro apontou no riso popular exagerado e na burla grotesca, o caráter de regenerador, isto é, uma forma das manifestações culturais não hegemônicas de afirmarem-se "soltando o vapor", para resistir à compressão diária a que estão submetidas.
Gostaria ainda de ressaltar que, os resultados do diálogo travado pelo tipo de produção histórica desenvolvida por Darnton com outras correntes historiográficas tem contribuído positivamente no sentido de reavaliar o uso de certos conceitos, mitificados pela tradição historiográfica.
No ensaio "um burguês organiza seu mundo: a cidade como texto", por exemplo, o conceito burguesia, tratado tradicionalmente pela historiografia pelo viés do "homem econômico" é questionado pelo autor, que demonstra não só a inoperância histórica do conceito generalizante, como nos revela um outro burguês, visto pelo viés sócio-cultural. Neste, as atribuições históricas são mais amplas, reveladoras senão de um modo de produção, de uma sensibilidade. Darnton extrae da descrição que um burguês faz de sua cidade e da dificuldade deste em manipular códigos desatualizados que não o ajudam a compreender o seu mundo e, na tentativa de superar essa dificuldade, a tendência de criação de um estilo de vida próprio de sua sensibilidade burguesa: "a descrição da cultura urbana revelou muito sobre a maneira de viver das pessoas mas, trata-se da apologia tendenciosa do estilo de vida burguês. A essa altura nosso autor havia feito explodir a terminologia arcaica e chegara perto de uma concepção cultural de classe a qual "cuisine bourgeoise" contava mais que a fábrica na identificação dos novos donos da cidade..." "...porque, como percepção da realidade modelou a própria realidade c imporia sua forma aos cem anos seguintes na história francesa, o século não só de Marx, mas também de Balzac".
A obra de Darnton, enfim, ao tratar esgotantemente do codificar e recodificar, das dificuldades e do poder inerente a esta atividade humana, independentemente do lugar estratificado de onde falam os agentes, nos remete ao nosso papel de decodificadores que somos. Frente ao avanço da imposição de um código uno, aplastrante, nossa tarefa é dar visibilidade ao maior número possível de códigos/vivências, pois só através da pluralidade de comportamentos, de paisagens sociais díspares, é que poderemos garantir a mola propulsora da manutenção do humano - o sonho.
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