Ciências Humanas e Sociais
O feminismo mudou a ciência?*
O feminismo mudou a ciência?*
Maria Teresa Citeli**
Teria o feminismo a pretensão - e a capacidade - de mudar a ciência?
O título do último livro de Londa Schiebinger, ao sinalizar com uma resposta parcialmente positiva a essa questão, pode soar audacioso e polêmico, especialmente aqui no Brasil, onde poucas obras da extensa bibliografia anglo-americana sobre o assunto foram traduzidas e debatidas.
No entanto, essa professora de História da Ciência na Pennsylvania State University, após outros dois excitantes livros e dezenas de artigos sobre o assunto, soube como apresentar um debate crítico, fortalecido por argumentos persuasivos, sobre assuntos tão abrangentes e polissêmicos como o feminismo e a ciência.1 Tanto é assim que, desde o lançamento do livro nos Estados Unidos, em 1999, as mais prestigiosas revistas internacionais, no âmbito das ciências naturais e humanas, publicaram resenhas favoráveis. No Brasil, um dos jornais diários de maior circulação, o Estado de S. Paulo, também publicou uma resenha, traduzida do jornal inglês The Guardian.
Não é apenas o sucesso garantido pela profusão de resenhas simpáticas que atesta a pertinência, a oportunidade e a importância deste livro. Sua abrangência vai da história das mulheres nas ciências, passando por aspectos de gênero que atravessam a cultura científica até uma discussão sobre padrões de gênero que perpassam o conhecimento científico produzido. Tal discussão mostra-se atenta aos avanços dos estudos anteriores, sugerindo que o pensamento feminista desenvolveu novas teorias, propôs novas perguntas e abriu campos de investigação em diversas áreas do conhecimento científico, chegando, em alguns casos, a provocar mudanças na seleção de problemas - corrigindo, assim, distorções na amostragem de pesquisas - e a alterar o próprio conteúdo do conhecimento produzido pelas ciências biológicas.
Seu olhar atento a essas questões não deixa escapar os efeitos políticos da prática feminista e das mudanças culturais ocorridas nas últimas décadas nos Estados Unidos. Podemos destacar as considerações da autora acerca da pressão exercida sobre instâncias públicas e organizações que financiam pesquisa ou implantam programas de saúde, o que resultou em mais verba para programas e mais recursos financeiros para as pesquisas médicas que deixassem de incluir apenas homens em suas amostras, como era o padrão de quase todos os estudos clínicos, como, por exemplo, os das doenças cardíacas, realizados até os últimos anos da década de 80 naquele país.
A audácia da autora ao revisar diversas linhas de investigação enquanto explicitamente declara sua tentativa de traduzir em linguagem simples e clara, para um público com formação ampla e diversificada, as principais tendências acadêmicas que lidaram com a temática gênero e ciência traz conseqüências, como ela própria adverte: "o que se ganha em amplidão, se perde em especificidade" (p.20).2 No entanto, a maneira como o livro foi estruturado contribui para facilitar a incorporação das diferentes abordagens que os estudos feministas sobre a ciência foram adotando ao longo dos últimos 30 anos. Na primeira parte, três capítulos resumem: 1. as flutuações culturais que incidiram sobre a inclusão ou exclusão das mulheres nas ciências em diferentes períodos históricos; 2. as recentes oportunidades de emprego e de sucesso ou fracasso para mulheres americanas em diferentes carreiras e disciplinas científicas; 3. as diferentes razões que levam a autora a refutar grande parte dos argumentos que consideravam a socialização diferenciada (entre meninas e meninos) para explicar o pequeno ingresso e as altas taxas de abandono feminino em algumas carreiras científicas.
A segunda parte é dedicada à compreensão das implicações de gênero nos conflitos entre duas culturas/práticas bem definidas ao longo dos últimos duzentos anos: a científica, de um lado, e a femininidade, de outro. Parte dos conflitos, segundo Schiebinger, deve-se ao contexto histórico, que teria levado a cultura científica a se estruturar com base na (falsa) premissa de que dois domínios da vida - o profissional e o privado - são separados. Essa separação poderia, então, explicar grande parte do desconforto que as mulheres experimentam no mundo profissional da ciência. Ao contrário do que possa parecer, a tensão que muitas mulheres encontram entre vida familiar e carreira profissional não é um problema meramente privado. De modo geral, a estruturação da carreira profissional de um homem cientista sempre partiu da premissa de que havia uma mulher em casa, cuidando de sua vida privada.
Na terceira e última parte, a autora deixa de lidar com as conseqüências da exclusão para as próprias mulheres e dedica quatro capítulos ao impacto do feminismo no conteúdo do conhecimento produzido por quatro ramos da ciência - Medicina, Primatologia e Arqueologia, Biologia, Física e Matemática. É bom assinalar que esse exercício não leva Schiebinger a resvalar na comprometedora idéia de que a mera presença de mulheres nas atividades científicas poderia ter mudado a ciência ou de que exista um "estilo feminino" de produzir ciência. Já na introdução ela alerta:
Dizer que as qualidades socializadas das mulheres mudaram a ciência não leva em conta os sucessos arduamente obtidos em vinte anos de estudos acadêmicos realizados por mulheres [women's studies], o papel de homens feministas e muitas outras coisas. (p.36)
No capítulo 6, ao analisar os impactos favoráveis sobre a Medicina, a autora detalha outros fatores envolvidos no processo de mudanças, que incluem, sem dúvida, a entrada de mulheres nas ciências, mas contemplam também as mudanças nas ideologias/práticas de gênero, o ambiente político receptivo (nos EUA, evidentemente), as ações junto ao Congresso americano e às agências públicas de financiamento.
Suas conclusões não deixam escapar a ponderação de que desde 1950 presenciamos mudanças significativas: mais mulheres presidem agências governamentais e ocupam postos acadêmicos de prestígio; instâncias governamentais interessam-se em monitorar a situação das mulheres nas ciências e publicar relatórios sobre o assunto; primatologistas, biólogas/os e arqueólogas/os abandonaram os estereótipos sobre a agressividade masculina (entre humanos e não-humanos), leis federais passaram a exigir inclusão de mulheres em testes para novos medicamentos. No entanto, os avanços não são uniformes, variam por região geográfica e área disciplinar e, mais que isso, não estão consolidados nem garantidos.
Outra estratégia adotada pela autora na estruturação do livro é a de incluir nas conclusões uma extensa lista de desafios intelectuais e institucionais que, certamente, poderão compor a luta "para levar o feminismo para dentro da ciência", num processo complexo, que integre mudanças políticas e sociais. De leitura impactante e agradável, esse livro certamente levará qualquer um dos segmentos de leitores pretendidos pela autora (leigos, cientistas e feministas) a refletir sobre o assunto, especialmente sobre a idéia de que revelar aspectos de gênero na estrutura, na política e no conteúdo das ciências faz parte do cotidiano e, ao mesmo tempo, do extraordinário processo de produzir ciência (p.334 e seguintes). O gênero, como qualquer outro mecanismo de controle de experimentos para garantir rigor crítico, não deve ser posto de lado, pois ignorá-lo é ignorar uma possível fonte de erros, como foi no passado e pode continuar sendo no futuro. São considerações que Londa Schiebinger entende necessárias para garantir que a ciência, como qualquer atividade humana, sirva a todos, inclusive a mulheres e feministas.
* SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru-SP, EDUSC, 2001 [original em inglês: Has feminism changed science? Cambridge, Harvard University Press, 1999] [ Links ].
** Doutora em Sociologia, assessora para pesquisa científica na UNIARARAS- Centro Universitário Hermínio Ometto, Araras/SP.
1 Os dois livros são: SCHIEBINGER, Londa. Nature's body: gender in the making of modern science. Boston, Beacon Press, 1993 e The mind has no sex? women in the origins of modern science. [ Links ] Cambridge, Harvard University Press, 1989. [ Links ] No Brasil,contamos com a tradução de apenas um de seus artigos -Mamíferos, primatologia e sexologia. In: PORTER,Roy e TEICH, Mikulás. Conhecimento sexual, ciência sexual. São Paulo, Unesp, 1997. [ Links ]
2 Audaciosa também, por diversas razões, pode ser considerada a EDUSC, editora responsável pela tradução do livro de Schiebinger para o português. Primeiro, pelo curto espaço de tempo (dois anos) entre o lançamento nos Estados Unidos em 1999 e sua publicação no Brasil em 2001. Depois, pelo esforço pioneiro, suprindo uma lacuna tão grande de traduções no campo dos estudos das ciências, como já fizera anteriormente ao publicar o livro Ciência em ação, de Bruno Latour. Ou, ainda, por ter feito escolha tão oportuna, oferecendo ao público leitor uma obra tão abrangente como este trabalho sobre feminismo e ciência. No entanto, a audácia da EDUSC também teve seu preço: a falta de uma revisão técnica da tradução por um especialista familiarizado com expressões já consagradas em outras obras sobre gênero. Um exemplo é a expressão "feminismo da diferença" que ao longo de todo o livro aparece sempre como "feminismo de diferença".
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