O direito à escolha reduziu-se à liberdade de consumir
Ciências Humanas e Sociais

O direito à escolha reduziu-se à liberdade de consumir


A propósito da conferência dada por Rancière em Serralves na semana passada.Artigo retirado do jornal Público:

"Se houvesse uma outra palavra para democracia, eu adoraria usá-la".Jacques Rancière diz que algo de nocivo se instalou no pensamento crítico. "O nome da doença é democracia", diagnostica.


Perguntam-lhe porque é que insiste em usar a palavra democracia - sim, por que razão ele, Jacques Rancière, um pensador francês que está nos antípodas dos neoconservadores, e que treme só de pensar nas guerras que já se fizeram para impor sistemas democráticos, continua a usar este termo nas suas obras e conferências? "Não conheço outro. Se houvesse uma palavra mais apropriada, eu adoraria usá-la", responde o professor de filosofia da Universidade de Paris VIII.
Jacques Rancière falava às mais de 600 pessoas que, há cerca de uma semana, não permitiram que houvesse uma só cadeira vazia no auditório da Fundação de Serralves, no Porto.
Foi da democracia que Rancière falou a maior parte do tempo. Da sua noção de democracia (um espaço onde a capacidade ou contribuição de qualquer pessoa, não importa quem, é valorizada na discussão política) aos diversos significados distintos que esta palavra assumiu ao longo dos tempos, "a maioria dos quais não são muito agradáveis". Como sublinhou o próprio Guilherme d´Oliveira Martins, moderador da conferência, "para Jacques Rancière a democracia não é só isto de ter a liberdade de vender e comprar".

Desenhar o pensamento

Como é hábito, Rancière socorreu-se da arte e da história para desenhar o seu pensamento: começou pelas imagens do fotógrafo freelancer iraquiano Ghaith Abdul-Ahad e discorreu sobre as colagens Bringing War Home feitas pela norte-americana Martha Rosler nos anos 70, que introduziu imagens das atrocidades no Vietname em cenários de lares burgueses confortáveis.

Há três décadas, argumenta o filósofo francês, havia um incómodo provocado "pela junção numa mesma imagem da guerra lá fora e do consumismo doméstico" - daí advinha a culpa e a rejeição de algo que nos responsabilizava. Mas, e hoje? Bom, agora "o próprio protesto parece pertencer ao processo já homogeneizado de consumo tanto de bens como de imagens".

Rancière acredita que o contraste deu lugar à equivalência. Aqueles que hoje se manifestam, provavelmente porque consumiram imagens da guerra no Iraque e da queda das Torres Gémeas em Nova Iorque, são os mesmos que oferecem, através das imagens de contestação nas ruas, um novo espectáculo para ser consumido.

"Terrorismo e consumo, protesto e espectáculo têm sido reduzidos ao mesmo processo, processo esse que é governado pela lei dos bens que, por sua vez, é uma lei de equivalência", afirmou o autor de, entre outras obras, Ódio à Democracia (Mareantes Editores, 2007), o seu livro que já está traduzido em Portugal.

O facto de tudo acabar equiparado não isenta, contudo, a sociedade contemporânea da culpa. Um problema irresolúvel para o qual, aos olhos do filósofo francês, o pensamento crítico actual não tem uma resposta. Porque somos muitas vezes o hedonismo que se quer ver como politicamente engajado, por exemplo. Algo do tipo: as minhas sapatilhas foram costuradas por crianças na Ásia, mas estes miúdos explorados (ai, não quero nem pensar nisto!) estão a criar riqueza e, num futuro próximo, estarão em condições de lutar por melhores condições de trabalho, uma vez que fazem parte de um país que agora dá as cartas na economia mundial. Esta é a lei do comércio global, não me culpem por isso. E, bem feitas as contas, eu até já "cliquei" várias vezes no sítio do Live Aid para dar o meu contributo electrónico.

"Não é só uma questão de vaidade. É também uma questão de culpa. Há um fantasma que nos chama culpados. Mas essa mesma voz diz-nos que somos culpados por duas razões diametralmente opostas. Primeiro, porque continuamos a sustentar as mesmas velhas mentiras sobre a realidade, a pobreza e a culpabilidade - tentamos ignorar que vivemos hoje num mundo onde não há nada mais que nos culpabilize. Segundo, porque de facto temos culpa ao contribuirmos através do nosso consumo desenfreado de produtos, protestos e espectáculos para infame reino da equivalência de bens transaccionáveis", defendeu Rancière.

Despolitização

O professor de filosofia está convicto que algo de nocivo se instalou no pensamento crítico contemporâneo. "O nome da doença é democracia", diagnostica. Não porque as pessoas tenham liberdade de expressão e de escolher os seus representantes, mas porque as democracias se ancoraram na noção de "identidade" associada ao livre consumo.

Isto torna o sistema democrático muito complexo, uma vez que os direitos humanos e a afirmação da escolha individual se tornam bens de consumo. Daí que aquilo que mais importa na política se desloque do âmago para as margens, fazendo por exemplo que a tónica ideológica de um candidato incida sobre domínios da ordem da despolitização.
O grande problema, concluiu o pensador francês, é que hoje "o monstro é demasiado doce". Pode até fazer mal, mas sabe tão bem...



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