Ciências Humanas e Sociais
O CAPITALISMO GLOBAL
CELSO FURTADO
Sábias heresias
10/Out/98
Paul Singer
Neste pequeno livro, o mais eminente dos economistas brasileiros vivos oferece suas reflexões sobre o momento histórico atual. Abre com um capítulo autobiográfico caracteristicamente intitulado "A Longa Marcha da Utopia". A pretexto dessas recordações, Celso Furtado nos lembra que "a ciência institucionalizada é sempre conservadora", observando pouco mais adiante: "Nenhuma sociedade consegue livrar-se completamente da ação de heréticos e nada tem mais importância na história da humanidade do que a heresia".
Celso Furtado, Raul Prebisch e seus companheiros do Cepal (Centro de Estudos para a América Latina) foram heréticos nos anos 1940 e 1950, quando desafiaram o liberalismo ainda persistente no recanto latino da periferia. Mas, pouco tempo depois, a heresia se tornou moda e por pouco não se tornou ortodoxia. O desenvolvimentismo cepalino foi ao poder com Juscelino, em 1956, e Celso Furtado teve a oportunidade de projetar a Sudene e capitaneá-la em seus anos iniciais. O desenvolvimentismo, versão terceiro-mundista do keynesianismo, tornou-se a doutrina predominante não apenas entre os economistas, mas também entre os governantes, que promoveram com entusiasmo a industrialização por substituição de importações. Não só no Brasil, mas por toda a América Latina e em boa parte da Ásia recém-emancipada pela revolução anticolonial.
Mas as crises dos anos 1970 mudaram tudo de novo. As políticas keynesianas e o seu melhor fruto -o Estado de bem-estar social- caíram em desgraça. Ressurgiram os velhos dogmas liberais, apoiados pelas empresas multinacionais e seus banqueiros, subitamente libertados da tutela estatal. Mental e politicamente o mundo regrediu ao começo do século, quando a liberdade individual era equacionada ao funcionamento irrestrito dos mercados e os Estados tinham como tarefa primordial manter a ordem e sobretudo o valor externo da moeda nacional. Neste novo mundo velho, Celso Furtado volta a desembainhar a pena e se lança no bom combate.
O centro desse seu novo trabalho é a análise da globalização, que ele apresenta do ângulo histórico. No começo da Revolução Industrial, a exclusão social provocada foi enorme e a estreiteza do mercado interno levava a nova indústria a procurar o mercado mundial. "Com efeito, se a lógica dos mercados tivesse prevalecido sem restrições, tudo leva a crer que a internacionalização das atividades econômicas (o processo de globalização) teria se propagado muito mais cedo. (...) Além do mais, neste caso seria de se esperar que houvesse uma concentração social da renda ainda mais forte nos países que lideravam a Revolução Industrial."
Mas não foi isso que ocorreu. Os trabalhadores se organizaram, conquistaram direitos e condições de elevar gradativamente os salários, fazendo a economia industrial voltar-se para o mercado interno. Com essa guinada da história, a acumulação de capital deixou de se subordinar unicamente à lógica do interesse do capital privado. "O dinamismo da economia capitalista derivou, assim, da interação de dois processos: de um lado, a inovação técnica (...), de outro, a expansão do mercado -que cresce junto com a massa dos salários." Esta mudança crucial começa no fim do século passado, com a legalização dos sindicatos e prossegue com a instauração do sufrágio universal, a partir da primeira metade deste século. E ela atinge o seu apogeu, com a vitória das forças democráticas, aliadas aos comunistas, sobre o nazi-fascismo, na Segunda Guerra Mundial. Nos 30 anos dourados que se seguem, desenvolve-se o Estado de bem-estar social no primeiro mundo e parte da periferia usa a independência política para se industrializar.
Colocada assim em seu contexto histórico, fica claro que a globalização, em sua quadra atual, representa um retrocesso. "O processo atual de globalização a que assistimos desarticula a ação sincrônica dessas forças que garantiam no passado o dinamismo dos sistemas econômicos nacionais. (...) Voltamos assim ao modelo do capitalismo original, cuja dinâmica se baseava nas exportações e nos investimentos no estrangeiro." A partir desta constatação fundamental, Celso Furtado faz a crítica do processo que se desenrola "em prejuízo das massas trabalhadoras organizadas e em proveito das empresas que controlam as inovações tecnológicas. Já não existe o equilíbrio garantido no passado pela ação reguladora do poder público. Disso resulta a baixa participação dos assalariados na renda nacional de todos os países, independentemente das taxas de crescimento".
Com muita clarividência, Celso Furtado vai analisando as perspectivas que esta globalização regressiva condiciona: "Tudo indica que prosseguirá o avanço das empresas transnacionais, graças à crescente concentração do poder financeiro, (...) o que contribui para aumentar o fosso entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos". A razão disso é o contínuo debilitamento dos Estados nacionais frente ao capital privado cada vez mais centralizado em imensas organizações globais. E Celso Furtado sabe, melhor do que ninguém, que a superação do subdesenvolvimento tem de ser obra política de Estados nacionais. Por isso, ele conclui: "A estrutura internacional de poder evolui para assumir a forma de grandes blocos de nações-sedes de empresas transnacionais que dispõem de rico acervo de conhecimentos e de pessoal capacitado".
Um dos capítulos mais interessantes do livro é o que trata da "Superação do Subdesenvolvimento", no qual são analisados três modelos tentados no último meio século: (1) a coletivização dos meios de produção; (2) prioridade à satisfação das necessidades básicas; (3) ganho de autonomia externa. Eles correspondem, genericamente, ao modelo soviético, latino-americano e asiático dos anos dourados. Celso Furtado mostra, em poucas linhas, os pontos fortes e fracos destes modelos. Apenas em relação ao segundo ele deixa transparecer um determinismo tecnológico que carece de melhor fundamentação.
Diz ele: "As economias subdesenvolvidas que se industrializaram com a cooperação das empresas transnacionais utilizam técnicas e mesmo equipamentos que já foram amortizados nos países de origem dessas empresas. A reciclagem dos sistemas produtivos em função de padrões de consumo menos elitistas poderá exigir novos investimentos, acarretando elevação de custos. Produz-se desta forma um efeito perverso: a tecnologia requerida para satisfazer as necessidades de uma população de baixo nível de renda pode ser mais cara, pois está substituindo outra que, embora mais sofisticada, tem custo de oportunidade zero para a empresa que a utiliza".
Na realidade, não há uma relação rígida entre padrões de consumo e técnicas de produção. A teoria do ciclo de vida do produto mostra que em seu início os novos produtos atendem apenas a elite, sendo caros e exigindo gostos sofisticados. Mas, em seguida, os produtos tornam-se de massa, os ganhos de escala na produção permitem barateá-los e eles ficam ao alcance de todas as bolsas. Portanto técnicas incorporadas em equipamentos já amortizados tendem a ser perfeitamente compatíveis com padrões de consumo populares.
No capítulo final de "O Capitalismo Global", o autor se ocupa do Brasil, apresentando um retrato cru e realista da crise em que se encontra. "Hoje, as taxas de crescimento são baixas, o investimento mantém-se deprimido e estamos imersos num processo de endividamento externo considerável. O desajustamento macroeconômico é evidente. (...) Metade das importações são pagas com endividamento externo. (...) Grande parte deste endividamento está financiando o consumo e para acalmar os especuladores são mantidas vultosas reservas de câmbio e pagas elevadas taxas de juros. Tudo isso se traduz em esterilização de poupança e em risco crescente de ingovernabilidade do país."
A fuga de capitais, que se processa desde agosto passado, confirma os presságios de Celso Furtado. Nesta pequena obra primorosa, ele condensa muito do seu saber, que mais uma vez se tornou herético. A realidade está desmascarando a ortodoxia neoliberal, cuja prática levou o mundo -e o nosso país em particular- à beira do abismo. É provável que em breve, ortodoxia e heterodoxia troquem de lugar. E mestre Furtado terá dado mais uma contribuição não só à ciência, mas também ao avanço social e econômico das nações menos desenvolvidas.
Paul Singer é professor na Faculdade de Economia e Administração da USP.
Folha de São Paulo
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