Ladrões de marmita
Ciências Humanas e Sociais

Ladrões de marmita



Em meio a mais uma semana tensa e turbulenta na bela e maltratada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, enquanto os ônibus ardiam nas ruas e o governador provincial, acompanhado do novo alcaide, recebia a comitiva da FIFA cantarolando um sucesso de Tim Maia, a notícia mais insólita desta urbe foi o “arrastão” promovido pelos bichos soltos do tráfico em um bairro da Zona Norte, cuja “féria” arrecadada ao final de uma violenta madrugada registrava vários guarda-chuvas e uma marmita de trabalhador. O tempora, o mores! Em priscas eras da literatura européia, os ladrões roubavam dos ricos para dar aos pobres. Hoje, em plena crise do capitalismo neoliberal, já não há sequer espaço para bandidos “românticos” como Robin Hood, o lendário fora-da-lei que, na Inglaterra medieval, lutava contra as arbitrariedades de um príncipe que usurpara o trono do célebre rei Ricardo “Coração de Leão”.



Eu já escrevi aqui nesta página sobre a gênese das organizações criminosas (não-legalizadas) da Cidade Maravilhosa, ainda em plena ditadura, quando alguns presos políticos e certos expoentes da bandidagem carioca se aproximaram em presídios como o Frei Caneca e o da Ilha Grande, onde estes aprenderiam com aqueles o beabá do leninismo e, assim, montariam a estrutura piramidal de seus grupos em moldes similares aos da esquerda armada. O tema já rendeu dezenas de livros e filmes, entre eles o clássico Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, texto escrito pelo jornalista José Louzeiro. É dessa conturbada história dos anos 70 que surgiu o Comando Vermelho, clamando por paz, justiça e liberdade, consigna sob a qual se abrigariam bandidos revestidos de um halo quase heróico, como o próprio Lúcio Flávio e o mítico Escadinha, a quem o saudoso partideiro Bezerra da Silva dedicou um sugestivo samba, pedindo ao Senhor Juiz que ouvisse seus versos em defesa do réu antes de “bater o martelo”.



Escadinha, ou melhor, José Carlos dos Reis Encina, filho de um notório militante do PT, era o rei da cocada preta no Morro do Juramento, favela localizada numa das áreas mais pobres do subúrbio carioca. Um dos fundadores da Falange Vermelha, mais tarde convertida no CV, o traficante angariou fama de bandido justo e generoso, sob cujo poder a “comunidade” gozava de paz e amparo financeiro. Quem conhece o abandono que as classes populares padecem em Bruzundanga sabe que a lenda é bastante verossímil: afinal de contas, desde os tempos da República Velha o único lema do poder público para os excluídos tem sido a malsinada frase de Washington Luiz – “o caso do povo é no porrete”.



De 80 para cá, no entanto, a delinqüência da província assumiu um caráter totalmente distinto. O narcotráfico varejista ingressou de vez na era corporativa do capital e sua única preocupação é acelerar as formas de acumulação e multiplicação do vil metal, a fim de satisfazer um banal horizonte de consumo, restrito a roupas e tênis de marca, pequenas maravilhas eletrônicas e exuberantes artefatos anatômicos (perdão, mas a descrição não poderia ser de outra forma, meu dileto leitor). Nada muito distinto, aliás, daquilo a que aspiram os nossos gênios da pelota, como Ronaldos, Adrianos e Robinhos, que, apesar do efêmero sucesso em plagas européias, volta e meia aparecem nas páginas policiais dos periódicos, seja por conta de uma pensão alimentícia atrasada, seja por obra de algum reconhecimento de paternidade ou, então, por acusações de estupro, assédio sexual e outros incisos do gênero.



Em verdade, essa tropa tupiniquim é apenas uma pálida versão do monumental batalhão de vorazes consumidores que, desde a década de 90, não pára de se reproduzir nos EUA, com um apetite insaciável pelos mais variados artigos que o sistema lhe empulha: TVs de tela grande, carros importados de luxo, festas milionárias para os herdeiros, mansões adquiridas por hipotecas, empréstimos volumosos e, óbvio, infinitos cartões de crédito (mesmo endividados em trilhões de dólares, os estadunidenses têm hoje cerca de 600 milhões de cartões!). Conforme escreveu o historiador Kenneth Serbin, em termos morais, os sobrinhos de Tio Sam “substituíram o cristianismo por uma nova religião do sucesso”, que não crê em vida após a morte nem se preocupa com as gerações futuras, “pois seu credo consiste em consumir o máximo possível aqui e agora”. Para sustentar esse modelo, o poderoso Império promove planeta afora a mais impiedosa pilhagem da história da humanidade; já os nossos bandidinhos, sem bilhete para Brasília, estão a roubar marmitas e guarda-chuvas nos subúrbios de Bruzundanga...



*Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor do recém-lançado : reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial” (Oficina do Autor).



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