João Santiago, sapateiro libertário
Ciências Humanas e Sociais

João Santiago, sapateiro libertário



Comecei com 11 anos no ofício de sapateiro, ao pé de mestres competentes aqui de Setúbal, com os quais acompanhei até aos 21 anos. Trabalhavam em pequenas oficinas. Aos 21 anos libertei-me daquela situação e comecei a trabalhar por conta própria. Muitas coisas aprendi com eles e outras tive de aprender sozinho. Até hoje.
Depois tive na tropa e, quando sai, não havia trabalho na profissão. Entretanto já era casado…tive que ir à procura de outras coisas, mas sem gostar do que me aparecia. Assim que tive oportunidade de voltar novamente para isto, nem hesitei.. Porque os outros empregos implicavam trabalhar com muita gente ao mesmo tempo. Não sei se foi por me ter habituado a lidar com pouca gente. De início, achei aliciante. Gostei! Depois apanhei aquele período a seguir ao 25 de Abril… e foi uma situação muito complexa. Meti-me naquilo a sério, com entusiasmo. E as pessoas com quem trabalhava não sentiam as coisas da mesma maneira. Comecei a ter problemas e tive de fugir. Voltei ao meu primeiro ofício.
Claro que nessa fase aprendi muito. Aprendi a conhecer melhor as pessoas. Tinha um sonho, um sonho com o qual sempre sonhei: acreditava que, um dia, aquele sistema político haveria de cair. E a partir daí haveria um despertar nas pessoas para coisas que até aí não tinham. Foi extremamente decepcionante para mim ver que as pessoas não eram capazes de acompanhar, de fazer a leitura disso e de se lançarem na aventura de reconstruir. Portanto, fiquei desiludido. Não só pelo facto de as pessoas não terem feito o que eu sonhava, também pelo de se terem virado contra os que sonhavam assim…contra quem queria fazer as coisas. E isso atingiu o ponto de agressão, da perseguição e de outras coisas do género. Não suportei e vim-me embora.
Os sonhos que tinha vinham-me de um passado. Tive a felicidade de conhecer gente muito interessante. Coisas que são pouco conhecidas e que deviam sê-lo. Conheci analfabetos, pessoas que não sabiam ler, muito pobres, que viviam do seu trabalho e ganhavam muito pouco mas, do pouco que ganhavam, tiravam dinheiro, quotizavam-se, para comprar livros. Tinham uma noção do que lhes faziam falta. E depois havia de aparecer alguém que lesse os livros para eles ouvirem. Era pequenito, na altura, tinha para aí 7,8, ou 9 anos, já sabia ler. Esses adultos teriam já 30 e tal ou 40, talvez mais, vinham de uma escola anarco-sindicalista riquíssima – isso hoje é pouco conhecida… Então eu lia para eles os livros que eles compravam e lia outras coisas que arranjavam clandestinamente. Ainda hoje não sei como é que conseguiam arranjá-las. Nomeadamente Batalhas, o jornal A Batalha que na época saia clandestinamente. A leitura de um texto que poderia ter durado uns minutos, prendia-me ali horas. Porque eles ouviam a leitura e mandavam-me parar para comentar. Aí é que estava daqueles momentos. Foi a minha escola. A seguir comecei a entusiasmar-me pelos livros, a ler muito. Ainda hoje leio. Já menos, porque a vida não deixa. Tive a felicidade de conhecer esses e outros amigos através do pensamento. Leitura, contacto, conversação foram a minha escola. Há coisas mais importantes que o trabalho. Para mim, o mais importante é conversar e pensar. A minha formação foi e ainda hoje é isso.
Na época havia folhetos, uns livrinhos pequenitos, de gente ligada ao anarco-sindicalismo e ao anarquismo, às ideias libertárias…Havia folhetos do Errico Malatesta, do Pedro Kropotkin, de outros assim. Eles gostavam muito de ouvir essas leituras. Não sei onde arranjavam as publicações. A verdade é que as tinham. E, coisa curiosa, guardavam os livros junto do peito…Também se lia muito romance. Certos autores, estavam muito em voga: o Emílio Zola, o Vítor Hugo. Um português, o Ferreira de Castro, de quem eles gostavam muito. Conheci indivíduos desses que até iam a Lisboa para se encontrarem com o Ferreira de Castro num café…agora não me ocorre o nome do café. Era rapazinho na altura. Depois conheci outras pessoas, já mais «entradas» no movimento. Cheguei a ter reuniões com elas. Aceitaram receber-me o que, na época, era muito perigoso. Nessas reuniões, perspectivaram o relançamento do anarquismo em Portugal.
Apesar do meu gosto pela leitura, nunca me aproximei de instituições oficiais, como sejam as bibliotecas. Contactei com associações que tinham a sua biblioteca, mas foi mais uma decepção. Moro num bairro de uma cooperativa de habitação. Entrei para a cooperativa com um entusiasmo extraordinário. E depois vi no que aquilo se tornou. O mundo de hoje é para os vigaristas. A cooperativa caiu nas mãos dessa gente quesó vê dinheiro.Na cooperativa estavam previstas iniciativas para juntar amigos e familiares. Portanto, a dada altura, formei uma biblioteca quase sozinho. Mas surgiu o velho problema. Aceitei formar a biblioteca conquanto não houvesse lá muito material político partidário. Estávamos num período quente…Por causa disso, os políticos que lá estavam caíram-me todos em cima e foi o fim. Não tenho outras experiências de encontro com a leitura em lugares públicos ou associativos. Noutros tempos, a leitura fazia-se em casa das pessoas. Umas vezes numa, outras noutra, para não dar muito nas vistas de ser sempre no mesmo sítio. O que contava mais era o convívio.
Agora sou quase solitário, estou quase sozinho. Os meus amigos morreram todos e entretanto, infelizmente, não encontrei ninguém que preenchesse esse vazio. Enfim, sou conversador, gosto de conversar com toda a gente…mas aquilo que me interessa de facto parece interessar poucas pessoas. Alguns não dão grande atenção àquilo que eu digo, outros não me compreendem. Outros até nem gostam de me ouvir.
Esse mundo onde aprendi a ler, pensar e conversar morreu. Aliás a conversação é uma coisas que quase já não existe. Mesmo em família. Enfim, a verdade é que tive a sorte e a felicidade de conhecer aquela gente especial no ler e no viver.


Reprodução da entrevista realizada para o vídeo «Aprender Viver e Trabalhar» (ICE/Abril em Maio), 1997, e publicada no nº1 do jornal PREC



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