Ciências Humanas e Sociais
Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros
Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros*
Daniel Ricardo Castelan
Mestrando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). E-mail: [email protected]
CERVO, Amado Luiz. São Paulo: Saraiva, 2008, 297 páginas.
Já no início do livro, Amado Luiz Cervo deixa clara a dimensão do empreendimento que se propõe a fazer: estudar a formação dos conceitos que pautaram a inserção brasileira no ambiente internacional ao longo de sua trajetória. Desde o princípio, há que se chamar a atenção para a ideia implícita no título: mais do que estudar fatos, tratados, desavenças pelos quais teria o Brasil se aventurado nesses anos, Cervo busca analisar a forma como os pensadores brasileiros em política externa interpretaram tais eventos e circunstâncias e, a partir daí, sugeriram cursos de ação ao país por meio da construção de conceitos e paradigmas. Ao se ler o título, espera-se do historiador um trabalho de história dos conceitos, em que a força motora da história se encontra mais na mente humana e sua motivação do que em elementos materiais da realidade.
Cervo vai além. Busca, na corrente francesa de Pierre Renouvin e Jean Baptiste Durouselle (1964), o suporte metodológico ao status que confere às ideias em sua obra. Conceitos adquirem peso de "forças profundas", que explicam a linearidade da política exterior em momentos de transição de regimes, como na redemocratização e na instauração da República, quando, aos olhos incautos, esperava-se uma mudança em política exterior que acompanhasse a consolidação do novo regime. Dessa maneira, Cervo maneja um enorme passivo na literatura brasileira sobre política externa: como explicar as populares "linhas de continuidade" da instituição que Paulo Vizentini batiza, no prefácio do livro, de "Casa Rio Branco"?
O status metodológico que confere aos conceitos, ideias e paradigmas ajuda a entender a cautela que tem o autor diante de interpretações estrangeiras, que carregam desde sua formulação interesses, valores e concepções alheios aos problemas específicos da América Latina e do Brasil. Pelo fato de influenciarem e constituírem a ação política, conferindo-lhe linhas de força, Cervo ressalta a importância em se consolidar um pensamento nacional, cujo problema epistemológico central seja o desenvolvimento. As principais correntes de pensamento que o autor analisa são a Teoria do Desenvolvimento; a Teoria da Dependência e o Independentismo; e o Neoliberalismo e os Céticos da Globalização. Algumas dessas correntes possuem laços em países da América Latina, os quais implementaram políticas mais ou menos próximas dessas concepções em seus modelos de desenvolvimento.
Entender a opção metodológica de Cervo, baseada na Escola Francesa, ajuda a compreender a forma como constrói seu argumento em torno da ideia de conceitos, paradigmas e "acumulados históricos". Sem embargo, o fato de reconhecer que toda teoria expressa a visão a partir de algum lugar específico não o impede de importar da Escola Francesa alguns pilares de sua obra. Além disso, toda a argumentação centra-se em certas premissas realistas de Relações Internacionais (no sentido de considerar o poder estatal como elemento definidor das relações entre os países), em que o Estado é visto não apenas como a arena onde se desenrola a política, mas também como o centro em torno do qual as identidades contemporâneas gravitam.1 O fato de abraçar o Realismo (originário da literatura anglo-saxônica) e contribuições da Escola Francesa levanta dúvidas quanto ao argumento inicial de que concepções teóricas de países do centro devem ser utilizadas com cautela porque estão imbuídas de valores e interesses do meio de onde surgem. Assim, Cervo elege quais escolas de pensamento estrangeiras contribuem para o interesse nacional (desenvolvimento da periferia) e quais servem ao interesse hegemônico (acentuação da dependência). Apesar da centralidade do Estado, não deixa de dedicar uma seção ao que chama de "relações intersocietárias", em que inclui turismo, migrações e cooperação técnica e científica.
Ainda na primeira parte da obra, Cervo dedica-se a explicar o que entende por paradigmas de política externa. Esse conceito comporta três elementos fundamentais: a) a ideia de nação que o povo - ou seus dirigentes - faz de si mesmo e do mundo; b) a percepção de interesses que o dirigente político projeta para a nação; e c) a elaboração política que se desenrola a partir do paradigma. Como se pode notar, sua concepção de paradigmas é próxima ao tipo ideal weberiano, conforme reconhece Cervo. Assim como os tipos ideais, os paradigmas não são perfeitamente encontrados nas ações dos dirigentes, mas podem servir como um parâmetro de comparação entre o típico-ideal e a realidade histórica.
Na política externa brasileira, quatro grandes paradigmas poderiam ser adotados para dar inteligibilidade à ação dos diferentes dirigentes até os dias de hoje: o paradigma liberal-conservador (1810-1930); o paradigma desenvolvimentista (1930-1990); o paradigma normal ou neoliberal (1990-2002); e o paradigma logístico. Justamente por considerar tênue a linha divisória entre política e teoria, Cervo não hesita em expressar suas preferências políticas, fazendo avaliações críticas dos homens que levaram adiante paradigmas que considera não terem atendido ao objetivo maior do desenvolvimento nacional. Mais do que tipos ideais (no sentido de existirem apenas nas ideias), Cervo propõe um ideal de política externa (que se aproximaria do Estado logístico) que serve de medida para o sucesso ou fracasso dos variados governos. Com essa postura, esbarra, entretanto, em alguns anacronismos. Munido de tal aparato conceitual, Cervo critica, por exemplo, a adoção do paradigma liberal-conservador, que não esteve voltado ao interesse nacional do desenvolvimento entre os períodos de 1810 e 1930, mas sim sujeito aos interesses de uma elite que imitava os padrões de consumo da sociedade europeia em expansão. Entretanto, deve-se reconhecer que, no Brasil, os conceitos de nação e desenvolvimento só foram agregar-se em torno de um mesmo ente - o Estado - a partir da atuação política iniciada no governo de Vargas e da formulação conceitual dos trabalhos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que colocou o desenvolvimento como objetivo primeiro da ação estatal, aliando-o a um projeto de nação orientado também pelo Estado. Portanto, é um anacronismo acusar a elite desse período de adotar uma "visão restrita" do interesse brasileiro, por não optarem pelo desenvolvimento nacional, quando essas ideias sobre nacionalismo e desenvolvimentismo simplesmente ainda não existiam no horizonte cognitivo dos formuladores de política. O próprio Cervo aponta a década de 1930 como o momento em que irrompe o paradigma desenvolvimentista, muito embora ideias industrialistas já estivessem presentes no debate brasileiro desde períodos anteriores.
Na segunda parte de sua obra, o autor propõe-se a tratar das relações do Brasil diante da globalização e da regionalização. Retoma os argumentos de Watson e Bull (1985) na obra The expansion of international society, para explicar a forma como a sociedade europeia do século XIX propagou-se pelo mundo, disseminando valores e interesses específicos da Europa pós-Revolução Industrial. Sob essa perspectiva, alguns elementos balizam sua argumentação. O principal diz respeito a como o Brasil garantiu seu espaço de autonomia diante dessa efusão de valores e interesses hegemônicos, e à forma como inseriu a busca pelo desenvolvimento periférico na agenda internacional.
Tendo em mente esses dois elementos, Cervo divide a atuação multilateral brasileira em quatro momentos: a) contribuições do Brasil à construção do sistema internacional pós-guerra, entre 1944 e 1949; b) esforços para reformar a ordem internacional, dos anos 1960 aos 1980; c) a perspectiva de atuar no sistema em vez de reformá-lo, entre 1990 e 2002; e d) o objetivo de estabelecer a reciprocidade entre estruturas hegemônicas e países emergentes a partir de 2003. Para o autor, o governo Lula teria alcançado um bom patamar na política exterior, justamente por defender os interesses nacionais diante da expansão da estrutura hegemônica (que deixou de ser, como no século XIX, oriunda da Europa e centrou-se nos Estados Unidos). Em suas palavras, o governo Lula pretende "não mais confrontar ou reformar, tampouco submeter-se de modo passivo, mas penetrar a ação das estruturas hegemônicas do capitalismo de modo a ser parte do jogo das reciprocidades internacionais, do comando e dos benefícios" (p. 103). Com essa atuação, seu ideal de política externa - o paradigma logístico - que durante a Era Cardoso não fora além de um ensaio, ganha corpo na esfera diplomática.
Uma mudança importante no bloco mental do governo Lula, responsável pela maior implementação do paradigma logístico, seria a reincorporação da visão cepalina dual de mundo - dividido em centro e periferia -, diante da qual o Brasil deveria aliar-se aos países emergentes da periferia para contrapor-se à criação de um ordenamento mundial que não lhes interessasse. Além disso, o paradigma logístico adotado pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim - "um estrategista das relações internacionais pós-neoliberais" (p. 25) -, teria inovado tanto por reconhecer as interdependências contemporâneas que ligam os países, quanto por centrar a atuação estatal no suporte à inserção da sociedade no plano internacional de maneira competitiva e madura. Essa foi a atuação que Amorim buscou, por exemplo, na Organização Mundial do Comércio (OMC), na Cúpula dos Países Árabes, na Comunidade Sul-americana de Nações, entre outras.
Se, por um lado, reconhece em Lula a possível consolidação do Estado logístico, ao longo do texto Cervo mostra uma atitude extremamente crítica com relação ao que chama de Era Cardoso, fundamentalmente pelo fato de os decisores em política externa do período terem aceitado a "globalização" como uma "força imperante". Diante do novo ordenamento mundial, nada mais restava ao Estado senão aceitar as regras colocadas pelo mercado. Entretanto, Cervo não se exime de tratar outra força como imperante na política internacional - a anarquia e sua lógica conflitiva -, restando aos Estados, no máximo, tentar construir instituições que possam "atenuar os efeitos da anarquia sobre o sistema internacional" (p. 96), conforme fez a diplomacia multilateral brasileira na construção do pós-Segunda Guerra Mundial. Com esse argumento, Cervo atribui à política internacional (assim como Cardoso havia atribuído ao mercado) a existência de leis inexoráveis ditadas pela anarquia. Diante da inexorabilidade das leis do mercado, Cervo propõe a inexorabilidade das leis da política. O governo de Fernando Henrique Cardoso, por não reconhecê-las, é caracterizado como "subserviente, regressivo e destrutivo" (p. 52).
Amado Cervo continua seu trabalho tratando de segurança e defesa na política exterior, e desenhando alguns traços sobre a postura brasileira diante da formação dos blocos econômicos. Pontos importantes desse capítulo dizem respeito ao período em que houve a nacionalização da segurança, principalmente sob o governo de Geisel, quando se definiu uma política de exportação de material bélico, firmou-se um acordo nuclear com a Alemanha, iniciou-se o programa nuclear paralelo e foi denunciado o acordo militar que o Brasil tinha com os Estados Unidos. Com esses passos, Cervo defende que o Brasil teria firmado sua autonomia em termos de segurança diante da possibilidade que existia de deixar-se estar sob a proteção norte-americana durante a Guerra Fria.
Outro argumento relevante, que vai contra grande parte da historiografia tradicional concernente à integração regional, diz respeito às origens da aproximação entre Brasil e Argentina. Cervo retira o foco da redemocratização e dos governos de Alfonsín e Sarney como variáveis determinantes para a aproximação entre esses dois países, como é correntemente postulado. Em vez disso, sugere um maior protagonismo dos governos militares, conscientes dos perigos oriundos de uma possível corrida nuclear. "Quando a perspectiva de domínio completo do ciclo nuclear apresentou-se a ambos, nos anos 1970, os militares tomaram a dianteira do processo de aproximação e entendimento para evitar o desvio armamentista" (p. 134). Ainda tratando da regionalização, o autor sugere a adoção de um novo modelo de aproximação, baseado no conceito de relações em eixo, que poderia pautar as relações entre Brasil-Argentina e Brasil-Venezuela.
Por fim, o último terço do livro é dedicado às relações regionais do Brasil. Aborda desde a interação brasileira com os vizinhos da América do Sul até a interação com a África e Oriente Próximo, passando por Estados Unidos, União Europeia, Japão, China e Índia. Em todos os casos, Cervo mantém a avaliação da medida em que serviram ou não ao interesse de desenvolvimento nacional.
Por fim, diante de um espectro amplo de temas, abordados de maneira tão pertinente pelo grande estudioso que é Amado Luiz Cervo, a obra Inserção internacional: a formação dos conceitos brasileiros é indiscutivelmente uma valiosa contribuição ao estudo das relações internacionais do Brasil. O autor constrói e sugere, ao longo da obra, modelos de inserção, conceitos e paradigmas, tendo como fonte um profundo conhecimento da história. A grande afinidade com a política internacional deixa Cervo livre para sugerir formas de inserção internacional que melhor atenderiam ao desenvolvimento nacional. Diante da força argumentativa do autor, há que se ter cautela apenas para não tomar esse lado normativo do trabalho como um fato histórico, e sim como uma interpretação que, embora extremamente consistente, deve ser confrontada com tantas outras que por vezes nos são apresentadas.
NOTA
1. Dentre os críticos do Realismo, de particular relevância para o debate é Wendt (1999), que sustenta que a anarquia pode ser permeada por diferentes culturas, mais ou menos propensas à violência entre os Estados. Walker (1993) desenvolve uma perspectiva mais crítica, questionando o papel do Estado na política internacional e particularmente o tratamento concedido a essa instituição pelo Realismo. Segundo Walker, a concepção realista tende a perpetuar padrões limitados de ação política, ao considerar que a ordem, o desenvolvimento e o progresso só são possíveis dentro das fronteiras do Estado - único ator relevante das relações internacionais.
Referências Bibliográficas
RENOUVIN, Pierre; DUROUSELLE, Jean Baptiste. Introduction a l'histoire des Relations Internationales. Paris: A. Colin, 1964.
WALKER, R. B. J. Inside/outside: international relations as political theory. Cambridge: University Press 1993.
WATSON, Adam; BULL, Hedley. The expansion of international society. Oxford: Clarendon, 1985.
WENDT, Alexander. Social theory of international politics. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1999.
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