IMPOSTURES INTELLECTUELLES
Ciências Humanas e Sociais

IMPOSTURES INTELLECTUELLES



Quinze minutos de notoriedade

Bento Prado Jr.
FILOSOFIA DA CIÊNCIA; A.SOKAL /AUTOR/; J. BRICMONT /AUTOR/; IMPOSTURES INTELLECTUELLES

'Realismo', 'idealismo' etc., já são, de antemão, nomes metafísicos. Isto é, indicam que seus partidários acreditam poder declarar algo determinado sobre a essência do mundo."
"Na filosofia não podemos cortar uma doença do pensamento. Esta tem de seguir o seu curso natural, e a cura lenta é o mais importante (Eis por que os matemáticos são tão maus filósofos)". Wittgenstein
o panfleto de A. Sokal e J. Bricmont é escrito com fluência e não lhe falta graça (embora amiúde involuntária), para quem simpatiza com o estilo agressivo e iconoclasta, inevitável na prática da crítica da cultura. Ao contrário das pessoas, que são objeto de respeito por definição, os estilos culturais transformam-se em fetiches quando protegidos pela aura do respeito. Deixemo-nos levar, portanto, pelo verdor da verve juvenil e alegre (falo aqui apenas do estilo, já que ignoro a idade dos professores das universidades de Nova York e de Louvain), que torna tão fácil a leitura deste pequeno livro, mesmo para aqueles que ainda não abandonaram os bancos escolares.
Tudo começou (este livro é o último episódio de um espetacular escândalo intelectual, que ferveu na mídia internacional: "New York Times" , "Le Monde" etc.) com um formidável passa-moleque aplicado com muito senso de oportunidade por Sokal a uma respeitável revista americana de "cultural studies", "Social Text". Sob um título perfeitamente cômico ("Transgredir as Fronteiras: Em Direção de uma Hermenêutica Transformativa da Gravitação Quântica"), que já de si implica em vários contra-sensos, publicou um ensaio em que parodia o estilo do pensamento "pós-moderno", de origem francesa, que teve mais eco nos "campi" norte-americanos do que no resto do mundo, produzindo intencionalmente um enxurrilho de sandices, onde os conceitos da física, da matemática e da lógica são sistemática e literalmente massacrados.
O mistério de como um texto visivelmente nulo foi aceito para publicação por uma boa revista (qualidade reconhecida por Sokal, isto é, pelo próprio autor do embuste que a expôs ao ridículo) permanece inteiro, a despeito das múltiplas declarações posteriores das partes em litígio, e não seria sensato tentar deslindá-lo aqui (1). O que nos interessa é tentar compreender o sentido e o alvo dessa impostura, a partir do que é exposto em "Imposturas Intelectuais" (2).
Qual o alvo visado pela paródia desmoralizadora? Sokal e Bricmont o definem como a "nebulosa pós-moderna". E é preciso reconhecer que essa empresa não é destituída de interesse (senão para a filosofia, pelo menos para a sociologia da cultura e das instituições pedagógicas). É impossível não reconhecer, na filosofia (e em seus efeitos nas ciências humanas) dos últimos 30 anos, a presença mais ou menos ubíqua de uma retórica sibilina e desconcertante. De fato, a incontornável obliquidade da linguagem filosófica (alusiva por essência) é elemento propício à proliferação da desenvoltura, do tom "grand seigneur" que se permite liberdade sem limite na manipulação de conceitos científicos, sem qualquer respeito pelas condições de seu uso preciso ou pela sua mera significação. O ridículo é frequente e a antologia levantada pelos dois autores poderia ser muito ampliada. O estilo da "dissertation française" (3) não é imune à diluição retórico-literária, como se vê na narrativa de Lévi-Strauss (em "Tristes Trópicos" ) da ruptura do jovem "agregé" de filosofia com o blablablá de sua disciplina de formação e sua conversão à pesquisa empírica na antropologia.
Isto dito, vejamos como é definido esse alvo. Se a expressão "nebulosa pós-moderna" é um bom achado literário e promete efeitos cognitivos, o alvo é definido, ele mesmo, de maneira muito nebulosa: trata-se da nebulosa "pós-estruturalista" ou "desconstrucionista" (A. Bloom era mais preciso, falando de pensamento parisiense "pós-sartreano"). Mas a névoa é ainda mais espessa, já que inclui quase toda epistemologia e mesmo a filosofia de língua inglesa -o pobre Quine arca com a responsabilidade de desligar a ciência do real e insulá-la numa esfera puramente linguística ou simbólica, abrindo curso à vaga do relativismo e do irracionalismo. Descobrimos que Quine é desconstrucionista. Com ele, entram na baila nebulosa, também, Merleau-Ponty e Bergson (um Bergson pós-moderno? só se for verdadeira a perspectiva pós-moderna que suprime a história). Tudo isso culminando -como numa sequência lógica- no abuso feminista de conceitos físicos para amparar uma teoria da diferença sexual que ataca o "falogocentrismo" de uma perspectiva emancipatória. Assim alinhados (4), os textos criticados (convenhamos, de natureza diferente e importância desigual) compõem uma espécie de "samba do crioulo doido". Mas o que é mais cômico? A pergunta de L. Irigaray: "A equação E = Mc2 é uma equação sexuada?". Ou essa arqueologia da Desrazão que explica o delírio epistemológico-cosmológico de um certo feminismo a partir dos "equívocos" lógico-semânticos de Quine? Aparentemente, de fato, há crise da Razão.
É o que se pode ver no momento mais sério e original (mas o mais fraco) do livro, isto é, o "intermezzo" filosófico do capítulo três, em que os autores exprimem sua '"filosofia da ciência", em contraposição ao que consideram o "relativismo" hegemônico na epistemologia. Pontuado pela evocação elegíaca do "racionalismo moderno" (que não seria nem elementarmente empirista, nem arrogantemente racionalista, mas algo de intermédio, próximo do bom senso comum) ou do espírito da "Aufklãrung", esse novo programa insiste em que o conhecimento científico deve, ao mesmo tempo, ter estrutura lógica e base empírica. Quem jamais disse o contrário? Nem Feyerabend.
O empirismo puro e bruto não poderia servir para quem pensa em física teórica, é claro. Mas Sokal e Bricmont nada podem conceder ao lado contrário, que insiste na construção lógica da teoria científica, já que os levaria, contra-vontade, na direção da melhor epistemologia. Daí recorrerem à transição "razoável" do conhecimento comum ao conhecimento científico: a ciência corta com o senso comum, mas não completamente. Mas brecando a tempo, pois nessa direção chegariam a uma perspectiva pragmatista, também suspeita de subjetivismo. A fórmula seria: um bom e saudável pragmatismo sem filosofia pragmatista, ciência sem pensamento. E, sobretudo, sem compromisso com a filosofia da lógica, que poderia nos afastar do mundo real com meros "jogos de linguagem" (curiosamente os inimigos da retórica francesa são, pelas mesmas razões, inimigos da filosofia analítica de língua inglesa).
Menos original (já que no início do século muita asneira foi dita no mesmo sentido) é o capítulo 11 que consagram a "um olhar sobre a história das relações entre ciência e filosofia: Bergson e seus sucessores". O que os autores não revelam (não sabem?) é que Bergson reconheceu que seus argumentos técnicos, contra a interpretação filosófica que Einstein deu à teoria da relatividade, estavam literalmente errados (5). E proibiu, em consequência, no início da década de 30, a republicação de " Duração e Simultaneidade". Falar, portanto, de um erro tenaz que se perpetua é simplesmente contraverdade ou falsificação. Seria, este caso, penso, pelo contrário, um exemplo de boa relação entre filosofia e ciência, ao contrário do que dizem os autores. Que, aliás, desencaminhados por seus informantes, não leram as melhores páginas que Merleau-Ponty consagrou à questão Bergson-Einstein. Deveriam ler os ensaios "Bergson Se Fazendo" e "Einstein e a Crise da Razão". Aí poderiam ver que a questão, de que tratam Bergson e Merleau-Ponty, não é apenas a do mau uso da ciência pelos filósofos (embora tratem também e bem desse assunto), mas sobretudo do mau uso da filosofia pelos cientistas. Ou, pelo menos, de um certo dogmatismo que, por exemplo, leva Einstein a dizer: "Não há, portanto, um tempo dos filósofos" (6).
Numa palavra, este livro põe em ridículo, muitas vezes com razão, um uso obscuro da linguagem por parte de filósofos. De fato, águas turvas podem dar ilusão de profundidade. No caso deste livro, ao contrário, as águas claras não escondem seu fundo raso. Os autores queriam jogar um paralelepípedo no ventilador e acabaram botando fogo num rojão que deu chabu. Mas ganharam os 15 minutos de notoriedade que a sociedade do espetáculo garante democraticamente a todo mundo. No que confirmam o velho Hegel (que relegaram ao inferno do "irracionalismo") que identificava, no coração da dialética da "Aufklãrung" a luta mortal pelo reconhecimento ou pelo puro prestígio. Ou o próprio Nietszche -nome polêmico neste contexto- que elaborou uma fina fenomenologia do ressentimento.
Notas
1. Mas é razoável pensar que o "prestígio da física no mundo contemporâneo" que os autores sublinham em seu panfleto, não foi indiferente ao êxito do embuste. Prova de que não basta querer assumir uma postura de crítica face à cultura e à sociedade contemporâneas para se livrar de todas as formas de fetichismo.
2. Não sei se Sokal qualificaria sua própria artimanha para enganar os editores de "Social Text" de impostura intelectual. O dicionário Aurélio assim define a palavra "impostura": "1. artifício para iludir... 2. fingimento... 3. vaidade ou presunção extrema; falsa superioridade... etc.".
3. Pois é bem disso que se trata: o alvo dos autores é a filosofia francesa que, segundo eles, veio a corromper o bom funcionamento das universidades americanas na área das humanidades: eles não deixam de brincar com a fácil transição de "haute culture" ("alta cultura") para "haute couture" ("alta costura"). No fundo, as "humanidades" entendidas como frivolidade e luxo desnecessário, fustigadas por um espírito frugalmente puritano e pragmático.Trata-se de uma estratégia de defesa de território que não é nova. Já em 1987 Allan Bloom escrevia em seu "The Closing of American Mind": "A literatura comparada caiu amplamente nas mãos de um grupo de professores que foram influenciados pela geração pós-sartreana dos heideggarianos parisienses, em particular Derrida, Foucault e Barthes. Esta escola é chamada de desconstrucionismo e é o último, previsível, estágio da supressão da razão e da negação da possibilidade da verdade em nome da filosofia". A tese é a mesma, embora enunciada de uma perspectiva liberal-conservadora, numa atmosfera "high brow", enquanto a de Sokal e de Bricmont, que são de esquerda (o primeiro, com estadia militante na universidade da Nicarágua sandinista), soa um pouco "red neck" uma espécie de estilo monsieur Homais das montanhas rochosas.
4. Na verdade, os autores não são os únicos responsáveis pelo estabelecimento desse "corpus" estapafúrdio. Na abertura do livro, citam 64 nomes de intelectuais que os auxiliaram na compilação do "corpus" de referência. Nesse "corpus", onde Hegel está presente, notamos a ausência inexplicável de Kant. Referência indispensável para quem ataca a idéia de que a ciência não nos dá acesso às coisas em si.
5. Bergson jamais criticou, é claro, a teoria enquanto tal.
6. Que seguramente não é uma tese propriamente científica. Mas não faltava, certamente, espírito filosófico a Einstein, que via problemas onde nossos autores só vêm evidências. Penso no Einstein que dizia (contra uma epistemologia ingenuamente realista): "O incompreensível é que o mundo seja compreensível".
Bento Prado Jr. é professor de filosofia da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros, de "Alguns Ensaios" (Max Limonad).

Folha de São Paulo



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