HISTÓRIA; ANO 1000 - ANO 2000 - NA PISTA DE NOSSOS MEDOS
Ciências Humanas e Sociais

HISTÓRIA; ANO 1000 - ANO 2000 - NA PISTA DE NOSSOS MEDOS


O fim do mundo
13/Jun/98
Peter Burke

HISTÓRIA; ANO 1000 - ANO 2000 - NA PISTA DE NOSSOS MEDOS /LIVRO/; GEORGE DUBY; POR AMOR ÀS CIDADES /LIVRO/; JACQUES LE GOFF


Georges Duby e Jacques le Goff estão entre os mais eminentes historiadores da Idade Média de nosso tempo. Pertencem à mesma geração (Duby nasceu em 1919 e Le Goff em 1924). Suas carreiras se desenvolveram paralelamente. Duby, já falecido, lecionou em Aix-en-Provence até entrar para o Collège de France, tendo sido eleito para a Academia Francesa. Le Goff ocupou postos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris), instituição que, a um dado momento, dirigiu.
Embora nenhum deles tenha sido aluno de Marc Bloch, o mais famoso medievalista francês deste século, ambos são admiradores de seu trabalho e pertencem à terceira geração da chamada "Ecole des Annales", fundada por Bloch e seu amigo Lucien Fèbvre. Depois da segunda geração, a de Fernand Braudel e Ernest Labrousse, cujos trabalhos enfocaram os ciclos econômicos, as estruturas sociais, a vida material e a geohistória, surgiu a de Duby e Le Goff, que concentrou-se na história cultural, nas mentalidades coletivas e na antropologia histórica.
Essa terceira geração envolveu-se também com o restabelecimento e a transformação de gêneros tradicionais, como a biografia e a história dos fatos. Como resultado, Le Goff produziu recentemente um denso livro sobre a vida de São Luís, enquanto Duby devotou um volume à batalha de Bouvines, e outro a Guilherme, o Marechal, um cavaleiro considerado em seu tempo um modelo de comportamento cavalheiresco.
Simultaneamente colegas, rivais e amigos, assim como grandes inovadores em sua profissão, Duby e Le Goff têm muito em comum. Em alguns aspectos, contudo, são muito diferentes tanto no que diz respeito aos seus interesses quanto aos estilos pessoais. Duby passou a maior parte da vida escrevendo, enquanto Le Goff é bem conhecido por suas contribuições em congressos internacionais. Duby construiu sua reputação como historiador da vida rural francesa, enquanto Le Goff sempre foi mais um historiador das cidades. Duby escreveu sobre a vida cavalheiresca, as mulheres, a família e também sobre a história da arte (era um inspirado pintor amador). Le Goff, por sua vez, concentrou-se na história da Igreja e das universidades. Ambos produziram estudos importantes sobre o imaginário coletivo, mas Le Goff escreveu sobre a imagem do Purgatório, Duby sobre as "três ordens" da sociedade: o clero, a nobreza e o povo.
Até seus estilos de prosa são diferentes. Duby é elegante, preocupado com a forma e conscientemente literário na execução, enquanto o estilo de Le Goff é mais acadêmico, mais argumentativo, mais coloquial. Fico pensando que tipo de carreira esses dois homens teriam seguido se ambos vivessem nessa Idade Média que tanto estudaram. Imagino Duby mais facilmente como abade de importante monastério beneditino, e também como seu cronista, enquanto vejo Le Goff como um frade dominicano combinando leituras e disputas numa universidade e prédicas por outros tantos lugares.
Os dois, Duby e Le Goff, são conhecidos como editores de várias séries de livros de história tanto para público acadêmico quanto para o grande público. Agora aparecem juntos em uma série que nenhum deles editou, série rara, tanto por sua concepção quanto por seu formato. O formato é o de um livro pequeno, mas ricamente ilustrado, que não apresenta texto, mas a transcrição (e presumível elaboração) de uma entrevista com um acadêmico sobre um tema específico -Michelle Perrot sobre a história das mulheres, Roger Chartier sobre a história do livro, e assim por diante. Esses são livros, ou melhor "livrinhos" da era gutemberguiana, na qual pouca gente tem tempo ou inclinação para gastar com muitas páginas impressas, salvo se essas se tornarem mais atraentes pelas ilustrações e a reprodução dos diálogos.
A mais singular característica desta série é, contudo, o tipo de pergunta feita pelo entrevistador. Ele solicita ao entrevistado que compare o presente com o passado. A Le Goff foi pedido que comparasse as cidades medievais com as modernas, e a Duby que ponderasse sobre o medo que o milênio teria trazido no ano 1000 ou trará com sua chegada no 2000. Alguns historiadores teriam dificuldade em entrar nesse jogo, mas esses dois famosos especialistas da Idade Média aceitaram-no com grande entusiasmo.
Esperava-se que Le Goff concordasse com o desafio, pois ele jamais teve medo de discutir a relação entre passado e presente. Já em 1957 chocara seus colegas mais conservadores ao publicar um ensaio cujo título era "Os Intelectuais na Idade Média", embora a palavra "intelectual" só tenha se tornado de uso corrente em francês no final do século passado, quando um grupo de escritores e acadêmicos, inclusive Emile Zola, saiu em defesa do capitão Dreyfus.
Acadêmicos conservadores ainda se impressionam mal com comparações entre o ontem e o hoje (até se os pontos de comparação servem para demonstrar as diferenças entre um período e outro). Descobri isso, por mim mesmo, quando, alguns anos atrás, publiquei um livro sobre "A Fabricação de Luís 14", comparando e contrastando os mecanismos de glorificação de Luís com aquela empreendida por regimes do século 20, em torno de governantes como Mussolini e Stálin.
Le Goff sente-se em casa na cidade medieval. Em 1980, publicou um ensaio de mais de 200 páginas sobre "O Apogeu da França Urbana e Medieval, 1150-1350", num volume organizado por Duby cujo título é "A História da França Urbana". No que diz respeito ao mundo contemporâneo, ele cresceu no porto de Toulon e viveu muitos anos em Paris. Respondendo às acuradas mas corteses perguntas de Jean Lebrun, desenha uma série de paralelos entre as cidades medievais e as modernas, comparação reforçada pela eficaz justaposição de ilustrações, como as dos trabalhadores em áreas de construção (págs. 36 e 37).
Algumas vezes fala sobre a China, Japão ou África contemporâneos -Le Goff é um homem bem viajado. Ocasionalmente refere-se à Bolonha, Florença ou Constantinopla medievais. Na maior parte do tempo, todavia, responde às questões gerais que lhe são feitas, concentrando-se em duas cidades: a Paris de hoje e a Paris medieval (como entre o maior número dos livros de história sobre o Ocidente, a parte do leão cabe à França).
Perguntas e respostas giram em torno de quatro grandes tópicos: inovação, segurança, poder e beleza. Na Idade Média, como hoje, as cidades eram centros de novas idéias e novas técnicas. Eram também locais em que a insegurança era mais sensível do que em outros, com muros construídos para proteger os cidadãos de ataques do exterior, o portão fechado à noite e vigias e arqueiros recrutados para defender a população de ataques vindos de fora.
Cidades eram centros de poder e, às vezes, corrupção, contra a qual os cidadãos se rebelavam de tempos em tempos -Le Goff cita o caso de Etienne Marcel em Paris, "o rico burguês e aristocrata que colocou-se a serviço da igualdade" e pagou seu idealismo com o preço da própria vida. Por fim, Le Goff nos lembra que a preocupação com a planificação urbana e a beleza vem desde a Idade Média. A primeira paisagem urbana conhecida (de autoria de Ambrozio Lorenzetti de Siena) data de 1346.
Tais continuidades entre o medieval e o contemporâneo são visivelmente evocadas por Le Goff, que mais de uma vez descreve projetos de moradia popular medievais, do tipo "Cingapura" (em francês HLM, apartamentos construídos pelo governo para as classes trabalhadoras). Frases como essa não o dirimem de sublinhar e apontar diferenças importantes entre os cidadãos do medievo e nós. As atitudes diante dos pobres, por exemplo. Os "pobres de Deus", como costumavam ser chamados, eram vistos na Idade Média não como um problema social, mas sim como um meio para os ricos obterem salvação, graças à caridade.
É em torno das diferenças que Duby concentra as suas conversas com Michel Faure, para a revista "Express", ou François Clauss, para o canal de televisão Europe 1. Desde o início ele enfatiza (como, aliás, o faz no livro sobre o "Ano 1000", publicado em 1967) que a idéia de que as pessoas esperavam ansiosamente o fim do mundo no ano 1000 não passa de um mito romântico. Nas entrevistas, discute aspectos gerais da Idade Média, comparando e contrastando suas ansiedades e as nossas. Cinco medos em particular: o medo da pobreza, o medo do outro, o medo de epidemias, o medo da violência e o medo do Além.
Uma diferença impressiona Duby, que volta ao tema insistentemente. Na sociedade medieval, pobreza e doença estavam difundidos, mas eram mais suportáveis graças ao que chama de "os mecanismos de solidariedade comuns às sociedades tradicionais", particularmente a solidariedade entre pobres, mas também a solidariedade entre ricos e pobres no sentido de que os ricos (como sublinha) consideravam a caridade uma forma de dever. O paralelo do século 20 que ocorre a Duby quando fala de solidariedade não é a Europa, mas a África, um paralelo ao qual retorna nada menos do que cinco vezes nesse curto texto (por contraste, nada diz sobre o Brasil).
Em outros momentos, contudo, se expressa sobre as similaridades entre a Europa medieval e a Europa dos nossos dias. A reação à grande peste de 1348, a Peste Negra, na qual um terço da população morreu em alguns meses, recorda-lhe, como, aliás, a outros historiadores, as reações atuais à AIDS, especialmente no que diz respeito à caça a um bode expiratório para culpar um grupo específico pelo desastre. Torneios medievais (que não são por ele romanceados) lembram-lhe os modernos jogos de futebol. Cidades medievais, nos diz, tinham seus grupos de jovens violentos. A diferença de nosso mundo é que os jovens se organizavam em associações urbanas (às vezes conhecidas como "abadias") que se tornavam mais fáceis de controlar. A institucionalização das gangues, ele sugere, pode ser uma sugestão para o problema da violência urbana nos dias de hoje.
A entrevista é um gênero literário com regras próprias. Ela realça, por exemplo, as diferenças entre os estilos literários de Duby e Le Goff. Ela os incita, por outro lado, a expressar reações pessoais (o que não se permite nos livros) e até mesmo a falar sobre si próprios. Eis porque Le Goff lembra de sua vida em Paris, enquanto Duby nos conta que sua mãe esperava o fim dos tempos. O mais importante de tudo é que a camaradagem que se estabelece entre os entrevistadores e os historiadores encoraja os acadêmicos a confrontar a questão da importância da história no presente de forma mais plena e mais sistemática do que jamais fora feito numa publicação. E essa é a ilustração mesma do que poderíamos chamar de "os usos do anacronismo".
Anacronismo ou "estado presente de espírito", no sentido de não distinguir as várias diferenças entre passado e presente, é o que todo bom historiador tenta evitar. Por outro lado, o anacronismo no sentido da insistência em focar nossas questões no passado, com a finalidade de entendermos melhor nosso próprio mundo, certamente precisa ser encorajado. É precisamente a combinação das questões de hoje, com as respostas de ontem que fazem esses dois pequenos livros tão especiais e esclarecedores.
Peter Burke é historiador e professor da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha).
Tradução de Mary Del Priori.

Folha de São Paulo



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