Quem foi Hannah Arendt
Maria De Fátima Simões
ELISABETH YOUNG-BRUEHL
sendo o próprio conceito de biografia importante na filosofia de Hannah Arendt, a proposta de escrever uma biografia da autora faria recomendável o cuidado de levar isso em consideração. A história de vida, que reúne o conjunto de atos e palavras de uma pessoa, tem, segundo a filósofa, o sentido de dar a conhecer ao mundo quem essa pessoa era, de revelar sua identidade singular. Entretanto, é só na esfera pública que os homens chegam a ser de fato únicos. Na esfera privada, na família, cada um é sempre a extensão do outro.
E. Young-Bruehl está consciente desse modo de pensar, pois ao relatar a vida da autora não se esqueceu das diferentes contribuições do público e do privado para a singularidade da pessoa. Embora a vida privada de Hannah não tenha sido desprezada, é sua participação na esfera pública e política que recebe a maior atenção.
Hannah nasceu em Konigsberg, em 1906, numa família judia bem-sucedida. Logo afeiçoou-se pela poesia alemã e estudos literários, criando com os amigos, na adolescência, um círculo de leitura e tradução do grego. De 1924 a 1929, estuda filosofia em Marburg com Heidegger. Aluna destacada, é por ele enviada a Jaspers em Heidelberg, a fim de encaminhar seu doutorado sobre o conceito de amor em Agostinho. Mulher emancipada do início do século, depois de vários namorados vai morar sem se casar com seu primeiro marido, Gunther Stern. A crise econômica da República de Weimar impede que ele obtenha um posto na universidade. Judia, ela estava impedida de pleiteá-lo. Ao contrário de uma carreira acadêmica, que sua brilhante formação sugeria como sequência natural, foi outra a via seguida pela filósofa após seus anos universitários.
Young-Bruehl mostra que, até ser reconhecida como intelectual e devotar-se ao que denominava "vita contemplativa", Arendt passou longos anos dedicada à "vita activa". É a ênfase nesse aspecto menos conhecido que constitui a virtude maior do livro. Até o fim de seus anos universitários, reconhecia a filósofa, ela fora ingênua e inteiramente desinteressada pela política. A descoberta da esfera pública, que viria a se tornar o eixo maior de sua filosofia, se deu quando a sua condição de judia a impeliu para o centro daqueles acontecimentos, durante a ascensão do nazismo, que reclamavam a ação e o pensamento centrados na política.
Foi essa condição que a fez inicialmente voltar-se para o movimento sionista, pelas mãos de Kurt Blumenfeld. O sionismo propiciou a sua primeira educação política. Não obstante o exaustivo trabalho intelectual e prático, ela nunca obteve no movimento sionista uma posição de destaque, nem a adesão de um grupo particular a suas idéias. A razão para isso era sua análise extremamente crítica e lúcida acerca da responsabilidade pelos acontecimentos, que não fazia concessões à massa de judeus e menos ainda à elite judaica. O apolitismo de uns e outros, a recusa em tratar politicamente a chamada "questão judaica" eram os alvos de suas ácidas críticas.
O relacionamento com o pensamento e a política de esquerda é, por sua vez, um capítulo à parte na vida da filósofa. Sendo os dois maridos da filósofa ativistas do PC alemão, ela tivera ocasião de conhecer de perto os dilemas e discussões do partido. O segundo marido, Heinrich Blucher, leitor ávido de Rosa Luxemburg, Trotsky e Bukharin, crítico do marxismo doutrinário, foi responsável por boa parte de sua visão política. Assim como mantinha distância em relação ao sionismo, fazia o mesmo com os partidos de esquerda, censurando neles a submissão a Moscou e a incapacidade de dar respostas adequadas aos problemas da época, dentre os quais o anti-semitismo, o nazismo e, na França, a massa de refugiados, judeus e comunistas. A sua necessidade de ser ativa diante dos acontecimentos fizera, contudo, com que intermediasse, na Berlim do início dos anos 30, uma rede de fuga destinada principalmente a comunistas.
Pode-se dizer ainda que, mesmo mais tarde, a sua relação ambígua, de distanciamento e proximidade, com o pensamento e a política de esquerda, tornava difícil aos leitores de seus livros classificá-la claramente. Ao mesmo tempo que era profunda entusiasta de Rosa Luxemburg e sua "revolução espontânea" -em quem se inspirara num dos temas principais de sua filosofia política, a defesa do sistema de conselhos populares-, fazia muitas críticas ao marxismo, chegando a propor como projeto de pesquisa para a Fundação Gugenheim, no início dos anos 50, um estudo dos "elementos totalitários do marxismo".
O texto de E. Young-Bruehl é assim não apenas pleno de informações acerca da "vita activa" de Hannah Arendt, como também acerca de vários debates da política de nosso século. O prefácio nos anuncia a pretensão de fazer uma "biografia filosófica". O que quer que venha a ser isso, se esperamos algo como a demonstração da gênese dos temas e conceitos próprios da filosofia arendtiana, a partir das experiências de vida, não é o que encontramos. Na verdade, a filosofia da autora está pouco presente. Nem tampouco o caminho é o da biografia romanceada, da construção de uma personagem. O que vemos é o desejo de fidelidade aos fatos mediante a apresentação de uma grande quantidade de documentos -cartas e artigos, basicamente.
Maria de Fátima Simões Francisco é professora na Faculdade de Educação da USP.
Folha de São Paulo
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