O poeta e o psicanalista
09/Mai/98
Yudith Rosenbaum
LITERATURA; POESIA; PSICANÁLISE; NOEMI MORITZ KON /AUTORA/; FREUD E SEU DUPLO - REFLEXÕES ENTRE PSICANÁLISE E ARTE /LIVRO
o escritor austríaco Arthur Schnitzler assim se refere a uma curiosa carta de Freud a ele endereçada, em maio de 1922 : "Por algum aspecto eu me constituo no 'duplo' do professor Freud. Freud me definiu certa vez como seu gêmeo psíquico. Na literatura percorro a mesma estrada sobre a qual Freud avança com uma temeridade surpreendente na ciência. Entretanto, ambos, o poeta e o psicanalista, olhamos através da janela da alma".
Nessa carta, ponto de partida do interessante estudo de Noemi M. Kon, Freud faz uma "confissão extremamente íntima". Tocado por uma "estranha sensação de familiaridade", reconhece no romancista uma identidade ameaçadora, "uma espécie de temor de encontrar meu 'duplo'±". Referindo-se a Schnitzler como um "explorador das profundezas", Freud afirma: "O senhor sabe por intuição -realmente a partir de uma fina auto-observação- tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho".
O aproveitamento que Moritz Kon faz dessa ameaçadora afinidade entre o analista e o artista rompe os limites estreitos de um paralelo simplista. O resultado é a minuciosa composição de uma sinfonia, cujas vozes melódicas se articulam harmonicamente para construírem uma obra psicanalítica singular.Vejamos as melodias que tecem essa escrita/partitura.
Três vertentes se entrelaçam no entendimento das relações ambíguas de Freud com a arte e o artista, desenhando os três movimentos sinfônicos desse ensaio. O primeiro deles se volta para o contexto de Viena do fim-de-século, buscando no "zeitgeist" (espírito do tempo) possíveis ressonâncias no pensamento freudiano. A conformação do chamado "homem psicológico", como nos elucida a autora, é um fenômeno europeu maior, alicerçado na atmosfera de derrocada do espírito clássico, de acolhimento do irracional e reconhecimento da essência múltipla e contraditória do ser humano. O movimento artístico e cultural denominado Secessão, na Viena finissecular, condensa todas essas características e fertiliza as produções freudianas, simultaneamente fruto da crise dos valores liberais do século 19 e matriz de um novo lugar para o imaginário.
Esse novo tempo histórico, Freud compartilha com outros artistas (entre eles, Klimt e Mahler), todos eles comprometidos com a veia conflituosa entre o ficcional e o científico. E aqui desdobra-se a segunda e fundamental vertente desse ensaio: a relação entre psicanálise e estética, pensada com originalidade a partir da ótica sensível da filosofia de Merleau-Ponty. Na crítica pontyana ao subjetivismo filosófico, tanto quanto ao objetivismo científico, a autora encontra uma afinidade inextricável com o olhar radical da psicanálise, que, antes de ser desvendamento do que se oculta -arqueologia do recalcado-, é criação de sentidos, produção (e não mera tradução) de significados. "O fazer psicanalítico", diz-nos Noemi M. Kon, "é um fazer criador, no sentido de que engendra realidades, ou sentimentos de realidade, no lugar de fazer advir uma realidade já conformada, desde antes, mas esquecida".
É contra a noção de "latência", que ainda resiste entre os analistas atuais, que se insurge a autora, tentando desmistificar a idéia de um significado oculto que se disfarça. A discussão sobre a imanência entre sentido e forma, pano de fundo desse ensaio, logrou avanços mais expressivos na teoria literária (em particular, na estilística de Auerbach e de Spitzer) do que na psicanálise. Ainda prevalece, nessa última, a anterioridade dos pólos dessa equação, seja do significado sobre o significante, ou vice-versa (como na psicanálise lacaniana). Daí ser bastante oportuna a problematização de Noemi Kon, fazendo reverberar a força criadora da arte na prática psicanalítica. A importância do livro está, sobretudo, em deslocar o leitor de uma compreensão cômoda do que seja a relação analítica, dinamizando o campo da psicanálise ao pensá-la como experiência estética.
A base epistemológica desse estudo inspira-se na potência poética da filosofia pré-reflexiva de Merleau-Ponty, que toma o gesto do pintor pós-impressionista como emblema de uma não-representatividade figural, ou seja, gesto demiúrgico do que se dá a ser a partir de seu próprio fazer. Antimimese, portanto, que recusa a dicotomia consciência/mundo, sujeito/objeto, palavra/coisa. Inspira-se a autora no pintor Paul Klee -"a arte não reproduz o visível, faz visível"- e o parodia com precisão: "A psicanálise não reproduz o audível, ela faz audível".
A discussão nos convida a revisitar o conceito de interpretação, suporte até hoje de uma leitura do humano que a psicanálise pretende ser. Que lugar caberia à interpretação, se analista e paciente forem pensados como sujeitos igualmente implicados na produção de sentidos irredutíveis a um último núcleo latente? O modelo proposto pela autora não considera a psicanálise uma hermenêutica (ciência da interpretação), o que traz implicações no modo de olhar o fenômeno psíquico. "Hermeneuein", palavra grega, significa trazer mensagens, agir como Hermes, o deus mensageiro. Se não há mensagens a serem traduzidas do latente ao manifesto, trata-se de uma nova psicanálise, reconhecida não mais pelo vértice científico, mas pelo estético. Freud, nos diz a autora, vislumbrou esse caminho, mas não o sustentou.
Temeroso de perder-se da severa via científica, Freud reluta em entregar-se à força do imaginário -tão poderosa em sua escrita artística- que o conduz na exploração do inconsciente. Esse seria, por fim, o terceiro pilar do estudo de Noemi Kon, que tem no texto de Monique Schneider ("La Realité et la Résistance à l'Imaginaire", 1977) sua âncora teórica. Preocupada em depreender uma possível teoria estética da obra freudiana, Schneider acaba desvendando uma "dupla navegação" do pensamento psicanalítico nos embates com a figura do artista: ora se acumplicia com ela, ora dela se defende. "O que está em jogo aqui", afirma Kon, "é o estatuto do imaginário para Freud e a psicanálise", entendendo-se a posição oscilante e ambígua de Freud frente ao artista como deslocamento de sua relutância maior em legitimar a fantasia no processo criador do cientista.
Aberta às irrupções luminosas do informe, do estranho familiar em nós, a autora se alinha, ao final do livro, com as teorias mais recentes que discutem psicanálise e arte, apontando justamente a dimensão paradoxal irredutível da experiência estética na prática psicanalítica e na própria existência humana. A noção de "espaço potencial", do psicanalista Winnicott, ganha destaque, bem como o conceito de "formatividade", do esteta italiano Luigi Pareyson. Ambos consagrariam o que Freud não conseguiu reconhecer sem hesitações e que a pergunta da autora sintetiza: "Cabe a nós aceitar a dimensão da criação, da positividade do imaginário, constituinte da psicanálise, e assim nos aproximarmos do duplo de todos nós, materializado na figura do poeta por Freud?".
Inevitável perguntarmos, na contramão do presente estudo, o que impediria a psicanálise de ser arte, uma vez que o artista também constrói por meio de "laborioso trabalho" -e que Freud parece esquecer quando menciona apenas a intuição do seu duplo, Schnitzler. Certamente, essa trilha nos levaria a outro livro, igualmente importante num tempo em que as diferenciações (sexuais, científicas, artísticas, políticas) tendem a se dissolver no campo analógico das similitudes. Por isso, o livro de Noemi Kon pede um leitor cuidadoso, que saiba percorrer o meio-fio de suas idéias sem perder os contornos, tanto da psicanálise, quanto da arte.
"Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar", afirmou certa vez o hermeneuta Paul Ricoeur. Após a leitura de Freud e seu duplo, poderíamos dizer que onde quer que alguém interprete (para muitos, ainda, o ofício do analista), o outro dele mesmo se ergue para sonhar e poetizar.
Yudith Rosenbaum é psicóloga e autora de "Manuel Bandeira - Uma Poesia da Ausência" (Edusp/Imago).
Folha de São paulo
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