FILOSOFIA: A POLIFONIA DA RAZÃO
Ciências Humanas e Sociais

FILOSOFIA: A POLIFONIA DA RAZÃO



Uma pedagogia da razão

Newton Bignotto
OLGÁRIA MATOS

o aumento do interesse por temas filosóficos, associado ao retorno da filosofia aos currículos do segundo grau em alguns Estados, tem permitido o aparecimento de livros escritos por especialistas de renome, destinados em grande parte a um público bem mais amplo do que aquele que normalmente se interessa por debates acadêmicos. Esse é o caso do mais recente livro de Olgária Matos. Dedicado ao estudo da relação da filosofia com a educação, ele parte da idéia da filosofia como uma "pedagogia da razão", para explorar as diversas possibilidades trilhadas pela tradição na elaboração de um itinerário adequado para a formação dos indivíduos, ou, como prefere a autora, para a construção de uma "paideia" cujos objetivos a própria razão se encarrega de traçar.
O tema do livro não é certamente novo na literatura e a autora poderia ter buscado o conforto de uma exposição cronológica das diversas soluções encontradas, ao longo da história, para o estudo da relação entre razão e educação. Essa, no entanto, não foi sua estratégia e é esse, a nosso ver, o mérito de seu livro.
Olgária nos oferece uma visão pessoal e instigante do tema, tecida na convivência com os grandes clássicos e elaborada mediante uma crítica madura de nossa época. Por isso, o leitor que recorre ao livro de maneira tópica, à procura de informações normalmente contidas em manuais, corre o risco de perder o que ele tem de mais precioso: um itinerário crítico, que, sem desconhecer os pilares da tradição, explora seus desvãos e seus pontos obscuros, para nos oferecer, no final, uma visão renovada da questão central da educação à luz da filosofia.
Mas evitemos um equívoco. O livro não está baseado na busca de textos menores e desconhecidos que, apresentados sob nova luz, poderiam contribuir para uma releitura da história das idéias. Seus eixos são os escritos principais de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Nietzsche e os pensadores da Escola de Frankfurt. Assim, na primeira parte, Olgária se dedica ao estudo da "paideia" grega, procurando mostrar, a partir da análise dos principais diálogos platônicos, a capacidade dos gregos para pensar a formação dos homens sob a égide dos espaços abertos pela pesquisa racional, mas também sob o influxo de virtudes como a moderação, a prudência, a amizade e outras.
A esse respeito é bastante esclarecedor o item dedicado à ética aristotélica. A estratégia geral do livro, no entanto, se revela menos em suas exposições sobre os temas tradicionais do pensamento grego e mais nas páginas dedicadas ao tirano e ao filósofo, quando a autora expõe os limites e os riscos contidos na educação pensada pela ótica da razão. O tirano é apresentado como um outro do filósofo, mas não como um outro da cidade, à qual pertence de forma integral. Essa constatação, presente já em Platão, não visava excluí-lo do mundo dos homens, mas demonstrar que nele estava inscrito como uma das possibilidades de nossa condição, que não podia ser descartada pelo simples apelo às conquistas da razão.
A segunda parte do livro se intitula "Filosofia e Reforma da Razão". Nela Descartes reina soberano. Olgária se dedica a mostrar como ele construiu uma nova morada para a razão e como determinou com isso o nascimento da subjetividade moderna. Ao mesmo tempo em que são explorados os veios principais de sua filosofia, em que a separação sujeito-objeto vai se constituindo num dos pilares do pensamento moderno e que o "cogito" se universaliza em oposição à particularidade do corpo, vão sendo criados problemas, segundo a autora, que a filosofia cartesiana deixou sem solução ou postergou, como no caso da moral.
Ela demonstra suas hipóteses tecendo um frutífero diálogo com autores contemporâneos como Merleau-Ponty, crítico da separação analítica entre sujeito e objeto, ou Foucault, analista arguto das filosofias da representação, mas sobretudo se referindo a questões como a da melancolia, amplamente retratada na pintura e na literatura e que não pode ser incorporada à nova arquitetônica senão pela ótica do negativo. As brechas do racionalismo moderno são expostas pelo recurso a outros discursos da própria época e que muitas vezes foram preservados pelas artes ou por formas de conhecimento que viriam a ser descartadas com o aparecimento das ciências modernas. Nessa parte o livro se preocupa menos em explorar a idéia de formação no primeiro sentido apresentado e mais em mostrar as condições de aparecimento de uma pedagogia da razão.
A pedagogia da razão se converte em pedagogia pela razão. Estamos no território dos iluministas, representados na terceira parte pela figura emblemática de Kant. Partindo dos limites impostos por ele ao uso da razão na produção de conhecimentos científicos, Olgária acentua, sobretudo, a importância da ética dos deveres, deduzida a partir do uso da razão prática, e o papel que é atribuído à razão na vida política.
O leitor, apesar das explicações dadas no prefácio, não deixará de sentir falta da figura de Rousseau, que tanta atenção dedicou à educação e muitas vezes de um ponto de vista extremamente crítico aos iluministas franceses; assim como não se pode deixar de notar a inexistência de referências mais longas a Hegel, para quem a idéia de "Bildung", que a própria autora associa à "paideia", foi tão importante. De qualquer maneira, o caminho escolhido vem introduzir uma viragem definitiva no texto.
Num primeiro momento a crítica ao racionalismo moderno é feita pela evocação do pensamento de Nietzsche e de Freud, para se completar com o recurso a temas caros à Escola de Frankfurt, da qual Olgária é boa conhecedora. O que se esboçava desde a segunda parte ganha na conclusão toda sua extensão. O projeto moderno certamente criou um novo mundo a exigir uma nova educação. Os avanços no domínio da natureza, no entanto, longe de forjar uma educação compatível com os desenvolvimentos técnicos, contribuiu para novas formas de barbárie e para a substituição da educação formadora pelo que Adorno chamava de "semiformação". O tom do final é pessimista, mas traz como pano de fundo o apelo a uma nova "paideia", forjada pelas armas da filosofia e temperada pelos valores da amizade e da prudência.
Tendo iniciado seu percurso pelos clássicos e observado que, enquanto Kant constrói uma ética baseada fundamentalmente na idéia de dever, Aristóteles foi capaz de pensar a vida na cidade sob a ótica da felicidade, Olgária à sua maneira reabre o espaço de discussão sobre a querela entre os antigos e os modernos. De posse dessa informação, o leitor pode se interrogar se, ao fazê-lo, ela não está, na verdade, se aliando ao passado, para propor uma crítica radical do presente e um elogio da filosofia como busca incessante de novos sentidos para a vida em comum.
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de "Maquiavel Republicano" (Loyola).

Folha de São Paulo



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