O demônio logrado
PAULO BEZERRA
rico e intrigante tem sido o destino do Fausto desde que a lenda, enraizada em mitos antiquíssimos, ganhou contornos mais amplos a partir da Idade Média e atravessou fronteiras, povoando o imaginário de culturas diferentes e distantes, migrando das narrativas orais para os espaços da pintura, da escultura, da música e da literatura. A investida foi tão ampla, profunda e irresistível que o tema e os motivos fáusticos acabaram por abranger todas as culturas, sendo difícil encontrar uma que não tenha o ''seu'' Fausto.
''Fausto no Horizonte'' parte da tradição européia e passa à latino-americana, trazendo como grande novidade o enfoque do tema na nossa tradição oral, que se estende da literatura de cordel às narrativas gauchescas.
Oswald Spengler vê o Fausto como símbolo de toda a cultura européia. Considera que a alma fáustica ocidental sonha ardentemente com um espaço infinito e, com isso, cria novos meios de expressão para traduzir seu ideal de infinitude espacial. Suas considerações dizem respeito à música, sobretudo à do contraponto, enquanto Jerusa estuda a temática fáustica nas narrativas orais, nelas descobrindo os novos meios de expressão desse sonho de infinitude. Tais meios se traduzem nas múltiplas recriações dessa temática pelas mais diferentes culturas, o que concretiza e pereniza a recriação dos temas e motivos aludidos, superando fronteiras de espaço e tempo. A autora mostra ainda que o tema se perpetua nas ''múltiplas recriações'' e mantém seus motivos fundamentais que se configuram ''num contínuo oral/impresso''.
Contudo, ao pesquisador não basta constatar a presença de elementos constantes em determinadas narrativas. Porque o estudo científico exige mais, requer conceitos e categorias capazes de dar organicidade e coesão lógica ao pensamento, torná-lo inteligível e coerente com o material pesquisado. Daí ser necessário um ponto de partida claramente definido e, no estudo comparado de arte narrativa, uma ''invariante'' geradora de outras variantes de enredo que abranjam espaços culturais diversos e distantes. É na descoberta e incorporação desses conceitos e categorias que o pesquisador-cientista se distingue do simples curioso e diletante.
Neste aspecto, ''Fausto no Horizonte'' se revela à altura da verdadeira investigação científica. Jerusa parte de uma invariante que denomina ''pactos'', ponto de partida de todas as narrativas fáusticas, em torno da qual se articulam variáveis intertextuais combinadas, em maior ou menor grau, com mitos e lendas, resultando num tecido que transborda num grande texto oral. Trata-se daquela ''matriz virtual'', ''que já vem organizada e da qual se fazem desvios e sucessivas oralidades, adaptações e transformações'', as quais ampliam o universo das narrativas fáusticas, mostrando que se constituem de textos contíguos. Tais textos ''vão passando por narrativas escritas e orais que se aproximam e se afastam'', e enfeixam todas essas variedades de motivos e formas de narrar numa categoria que a autora denomina ''tecido fáustico''. É esta categoria que permite acompanhar o movimento da reflexão de Jerusa, verificar que os relatos fáusticos migram de suas matrizes ''originais'', formam um caleidoscópio de narrativas que se sucedem e se auto-recriam em tempos e espaços diversos, e dão conta do grande dilema que sempre moveu o homem: o enfrentamento da ordem cósmica e social do universo.
E tudo isso ela encaixa noutra categoria já consagrada nos estudos da literatura popular como ''ciclo do demônio logrado''. É a partir dessa categoria que a pesquisadora analisa ''O Ferreiro das Três Idades'', folheto do poeta popular paraibano Natanael de Lima, e mostra que este faz parte de uma tradição em que o demônio sempre acaba vencido pela ''astúcia do homem ou da mulher, com ou sem a intervenção divina''. A autora compara o folheto de Natanael de Lima com a história do ferreiro Miséria, de tradição gaúcha; em seguida, incorpora a temática do ferreiro tal como aparece em narrativas portuguesas, francesas, argentinas e outras, mostrando que é dentro desse círculo que algumas variáveis dos motivos fáusticos, intertextuais e mais tardias, se articulam com mitos e lendas; o logro aparece, assim, como meio de que se vale o fraco para enfrentar e vencer o forte, o que situa o tema na remota tradição do folclore e do mito (como se sabe, graças ao logro, Ulisses vence Polifemo, Prometeu vence Zeus e Sísifo engana três vezes a morte).
Para Vladimir Propp, a inteligência e a astúcia constituem a força do fraco e com isso ele vence um inimigo mais forte. O pacto, quase sempre com Satã ou outro representante das forças do mal ou da suprema ordem cósmica, aparece como elemento deflagrador, é movido sempre por uma carência _de fortuna, mocidade, felicidade, saber etc,_ que não pode ser resolvida na ordem social ou cósmica. Por isso, o pobre faz um pacto com o diabo, símbolo maior da rebeldia e da desordem, abrindo um espaço de utopia; só fora da ordem cósmica cristã será possível usufruir o prazer de viver com o mínimo de condição humana.
Portanto, o pacto já se apresenta potencialmente como uma dupla transgressão: primeiro, o pobre transgride a ordem religiosa cristã que só prenuncia o pleno gozo da vida no mundo pós-morte: depois, transgride o próprio pacto, ao lograr o demônio como detentor exclusivo do monopólio da felicidade que motivou o pacto. Entre o pacto e o logro, desenvolve-se a tensão da narrativa, perenizando toda a problemática do Fausto _incluindo-se naturalmente o de Goethe_ nesse ''tecido fáustico''.
Na sua exposição, a autora mostra como as reformulações do tema fáustico incorporam o novo a um contínuo antiquíssimo, o que é muito difícil, porque as mudanças se tornam às vezes irreconhecíveis e só a inserção de um vasto material comparado sobre diferentes povos e diferentes níveis de desenvolvimento pode resolver o problema. É um desafio que Jerusa consegue vencer.
Coerente com a sua metodologia, constrói o sistema de imagens e motivos com uma escrupulosa análise de temas e motivos, que usa como material de reflexão e base segura para conclusões e soluções mais ambiciosas, e vai sedimentando uma poética histórica dos temas e motivos fáusticos, já esboçada na categoria de ''tecido fáustico''. Com isso, deixa a impressão de que ''Fausto no Horizonte'' é o esboço de uma teoria geral dos temas e motivos fáusticos e de sua constituição em sistema. Seu projeto poderá ser uma importante contribuição brasileira para o assunto, quer pela acuidade da investigação, quer pela inserção da produção oral brasileira no universo fáustico. O Fausto está lançado.
Paulo Bezerra é professor de russo no departamento de línguas orientais da USP e da Universidade Federal Fluminense
Folha de São Paulo
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