Valéria Amorim - Cinismo! Um governo que contou com o apoio maciço dos povos indígenas, que se comprometeu com uma série de compromissos com as lideranças indígenas antes das eleições, e que na prática relegou os indígenas à sua própria sorte, negociando os seus direitos como moeda de barganha para garantir a tão estimada governabilidade, que se negou muitas vezes durante estes anos de governo a ouvir as reivindicações dos povos indígenas e a montar uma política indigenista, não pode abrir a boca para dizer uma blasfémia como esta.
Os indígenas historicamente nunca tiveram medo de reivindicar e de lutar pelos seus direitos. Não foi à toa que os europeus não conseguiram escravizá-los. Muito menos necessitaram de que alguém dissesse para não terem medo. Ao contrário, o que os indígenas no Brasil precisam é justamente que suas reivindicações sejam ouvidas e levadas a sério pelas autoridades responsáveis.
ANA - É comum no Maranhão encontrar casos em que comunidades e lideranças indígenas são cooptadas e envolvidas em empreendimentos predatórios?
Valéria - Não é comum, graças a deus! [risos] Mas existem alguns casos de famílias que se envolvem com madeireiros. Os motivos, vários. Não justifica, porém, muitas vezes é a falta de perspectivas, o fascínio e a possibilidade de adquirir alguns bens da nossa sociedade etc.
ANA - Vamos mudar um pouco o foco da conversa, a Companhia Vale do Rio Doce é uma das principais inimigas dos indígenas no Maranhão?
Valéria - Eu diria que a Vale do Rio Doce é uma ameaça à sobrevivência das florestas, dos povos indígenas e de algumas pequenas comunidades rurais não só no Maranhão, mas também no Tocantins e no Pará. Estamos falando da maior produtora e exportadora de ferro do Brasil e terceira do mundo, cujas reservas localizadas na Serra do Carajás têm potencial de exploração estimado para cerca de mais 400 anos. São 73 empresas ligadas à Companhia que tem como alguns de seus principais accionistas George Soros e Citicorp. Esse “big monstro” não satisfeito apenas com a exploração de suas minas, também tem investimentos nos sectores de transporte, energia, produtos etc.
Para exemplificar melhor vou citar questões bem pontuais. Estrada de Ferro Carajás e siderúrgicas de refinamento do ferro distribuídas ao longo do percurso Parauapebas-Porto do Itaqui: minério transportado em vagões sem cobertura, intoxicando os caminhos, pessoas e bichos, às consequências... imagine! Fora isso, os fornos das siderúrgicas são alimentados por carvão vegetal. O resultado prático é o corte de madeira ilegal dentro das áreas indígenas, carvoarias clandestinas e devastação das florestas; Desastres ecológicos e impunidades: no Maranhão contamos dois casos graves, um em 2000 quando 25 mil litros de petróleo diesel derramaram dos tanques de armazenamento atingindo directamente a comunidades do Gapara, trecho Itaqui-Bacanga. O IBAMA multou inicialmente a Vale do Rio Doce em 3 milhões de reais, multa essa que foi reduzida a 100 mil reais e que actualmente está suspensa devido à existência de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) assinado entre a companhia e o Ministério Público. Em 2004 novo vazamento de óleo aconteceu na mesma região (Itaqui-Bacanga). Desde então a Vale do Rio Doce indemniza as famílias atingidas com arroz e banana proporcionais a colheita de uma safra anual. Porém, as estimativas é que seja preciso cerca de mais uma década para que aquele terreno se recupere e volte a ser cultivável; Hidroeléctrica de Estreiro: também aqui no Maranhão, vai atingir os indígenas e comunidades rurais do Maranhão e Tocantins. A hidroeléctrica provocará o alagamento de 434 Km2 e a transferência de 5.000 famílias; Pólo Siderúrgico em São Luís: cerca de 18 mil pessoas correm o risco de serem desalojadas caso esse pólo seja implantado. Em sua maioria, são pescadores artesanais, famílias que sobrevivem da agricultura familiar etc. Sem falar nos impactos ambientais e sociais que o empreendimento deste porte pode trazer a uma Ilha como São Luis.
A Vale do Rio Doce é apenas um dos principais inimigos dos povos indígenas no Maranhão. A burocracia, a má vontade política, o descaso, a corrupção, a usura desenfreada são também outros inimigos. As terras indígenas estão cada dia mais ameaçadas pelos madeireiros e traficantes, a saúde indígena tem ficado pior nesses últimos 3 anos e começamos a registrar os primeiros casos de suicídio, prática recorrente quando os indígenas não percebem perspectivas de vida; a educação está totalmente abandonada a própria sorte. Nem a Funasa, nem o Governo do Estado, através da Secretaria de Educação, assumiram a questão indígena de fato. O resultado é abandono e descaso.
Como disse Ailton Truká, “da mesma maneira como os piratas desciam o Caribe para saquear a costa nos séculos XVI e XVII, os piratas modernos continuam saqueando a América. Só que agora eles não estão saqueando com trabucos. Eles estão saqueando com computadores, satélites. Sofisticaram muito os meios. No lugar de piratas truculentos, eles estão botando executivos, presidentes democratas, parlamentares vacinados. E tudo isso é uma orquestra montada para que o fluxo de sangria da América Latina continue vivo. E para não permitir de maneira alguma que se estanque esta veia aberta na América Latina. Enquanto tiver uma grama de minério, algum rio correndo ou uma floresta em pé, haverá um doido inventando e justificando programas que chama de desenvolvimento.”
ANA - Então são muitos os problemas ecológicos no Maranhão?
Valéria - O Maranhão é considerado estado nordestino, mas sua vegetação é um misto onde se pode encontra mangues no litoral, floresta Amazónica a Oeste, cerrado ao Sul, mata de cocais à Leste e campos alagados na Baixada Ocidental. Logo, temos problemas ambientais para todos os gostos.
Os manguezais estão ameaçados pelos aterros para expansão urbana, desastres ecológicos provocados por derramamento de petróleo, poluição por lançamento de esgoto, cultivo de camarão por indústrias de carcinicultura (em sua maioria estrangeiras) etc.
Da floresta Amazónica resta apenas o que corresponde às terras indígenas localizadas nesta região do estado e que estão ameaçadas pelos madeireiros, pela presença de fazendas agropecuárias etc.
No cerrado a grande ameaça encontra-se na indústria da soja. As consequências tem sido proporcionais ao avanço da produção (mais de 300.000 hectares de soja plantada), são elas: a devastação acelerada do cerrado, desalojamento da população local, utilização de grande quantidade de insecticidas no solo, utilização de sementes transgénicas, assoreamento dos cursos de água, contaminação das águas pelo uso intensivo dos agro-tóxicos e destruição de culturas próprias da região, como piqui, cupuaçu etc.
Nos cocais, a agricultura e a expansão das actividades pecuárias são os maiores inimigos dos coqueiras. As matas são derrubadas para darem lugar a pastos.
E nos campos alagados o problema se dá com a criação de búfalos soltos nos campos que destroem a fauna e a flora, sem falar na apropriação irregular por particulares. Os moradores da baixada vivem da caça de algumas aves desta região, da pesca e da extracção do junco, material utilizado para cobertura das casas. A criação dos búfalos destrói tudo isso e a sobrevivência dessas comunidades tradicionais é prejudicada.
Agora uns dados gritantes, só pra chocar um pouco antes de finalizar este assunto. [risos] Você sabia que em São Luis, capital do Estado, todo o esgoto produzido é jogado nos Rios Anil, Bacanga e no Mar? Imagine como é o sistema de colecta de lixo e esgoto no restante do estado... não existe tratamento!
O Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, um espectáculo da natureza, sofre pelo avanço do turismo desenfreado e das consequências que esse “desenvolvimento” tem provocado. Nas três principais cidades que integram o parque o esgoto é in natura, no Rio Preguiças. O IBAMA conta com 7 (sete!) funcionários e uma estrutura mínima para fiscalizar uma área de 150 mil hectares.
ANA - E há movimentação da sociedade, de grupos ecologistas contra tudo isso?
Valéria - Existem sim, o Fórum Carajás é sempre vigilante nas questões relativas às comunidades tradicionais e à questão ambiental (agronegócio, mangues, siderurgia etc). Realizam estudos e relatórios sobre as consequências do homem e do dito desenvolvimento sobre o meio ambiente, denunciam os crimes ambientais, fazem campanhas etc.
Há também a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento das Mulheres Quebradeiras de Coco (MMQC), o Centro de Defesa dos Direitos Humanos, a Sociedade Maranhense dos Direitos Humanos (SMDH), as organizações dos pescadores artesanais, as comunidades da baixada maranhense, os indígenas e sua organização, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Movimento Reage São Luis e CAECIP (Contra a Instalação do Pólo Siderúrgico em São Luis), entre outros.
ANA - E a diversidade anarquista local também participa dessas lutas?
Valéria - Há uma participação modesta e pessoal, principalmente no movimento contra a instalação do pólo siderúrgico em São Luis.
O colectivo anarquista, do qual eu faço parte, está adormecido. Problemas de ordem pessoal e política acabaram contribuindo para a nossa desarticulação. Hoje os indivíduos encampam às lutas de forma isolada. Alguns junto ao movimento contra o pólo, outros actuando com o movimento de pessoas portadoras de deficiência, outros militando no movimento estudantil, outros pesquisando os impactos dos grandes projectos no Maranhão, eu trabalhando com a questão indígena... Assim seguimos, meio desfacelados. Uma grande pena.
ANA - E como você vê a ligação, anarquismo e indígenismo? Temos muito o que aprender com os índios? [risos]
Valéria - Anarquismo e indígenismo é uma ligação possível e complementar. As diferentes formas de organização nas sociedades indígenas são complexas e fascinantes. A relação homem natureza, homem terra, homem mundo, homem outros homens são relações pautadas no respeito. O mutualismo pode ser percebido nas relações de reciprocidades. A educação na aldeia é sempre uma educação que incentiva a criança a ser autónoma e auto-suficiente na natureza, além de ser de responsabilidade social, e não exclusiva dos pais.
Olhar para as sociedades indígenas é perceber que o anarquismo e as sociedades sem estado são formas de organização completamente possíveis. Porém, dentro de um contexto totalmente adverso às estruturas do capitalismo.
É preciso dizer que as sociedades indígenas não são sociedades perfeitas, nem deveriam ser, posto que são humanas. Não cabe romantismo, cabe sim conhecer suas estruturas, viver sua realidade e perceber em que podemos aprender com eles, povos resistentes que lutam a 505 anos e que sobreviveram a tantos massacres.
ANA - Conheço alguns aldeamentos indígenas no litoral sul de São Paulo, e já percebi que neles não há bicicletas, pelo menos eu não vi, também não me recordo de ter visto em algum lugar do Brasil uma imagem de índios e bicicletas. Enfim, como amante da bicicleta, te pergunto: os índios do Maranhão usam bicicletas? [risos]
Valéria - Caramba! Que pergunta difícil! Bom, preciso de um tempo pra buscar no arquivo da "máquina" (cabeça), e olha que o meu "HD" não é um dos melhores e o "processador" então... precisa de tempo para pegar no tranco. Mas, passado o tempo necessário, a máquina conseguiu processar as informações e encontrou na mente a imagem.
Sim! Os indígenas no Maranhão também usam bicicleta! (certo que eu só vi uma, somente uma vez). Foi na aldeia Morro Branco, literalmente um morro bem no meio da cidade de Grajaú. Lá eu vi alguns indígenas que andavam de bicicleta. Do mais, não consegui lembrar de nenhuma outra imagem.
Os indígenas tradicionalmente são andarilhos. Hoje é certo que tem muita gente que prefere a comodidade dos carros, mas... ainda se anda muita nas aldeias.
ANA - Estamos terminando, quer dizer algo mais?
Valéria - Quero agradecer a oportunidade de socializar todas essas informações com os leitores da ANA. Falar sobre a questão indígena no Maranhão, os impactos dos grandes projectos e os problemas que enfrentamos com relação à preservação da natureza e a sobrevivência de comunidades tradicionais que vivem e mantêm uma relação de respeito ao meio ambiente é uma forma de fazer conhecer à luta e de, quem sabe, ganharmos alguns aliados.
Canais alternativos como esse possibilitam conhecer realidades que a gente desconhecia e que não são de interesse dos grande media. Assim, todas as vezes que tomamos ciência de outras formas de resistência, seja ela indígena, negra ou popular, isto serve como alimento a nossa esperança de que não estamos sozinhos nesta luta, que existem outros teimosos pelo mundo afora que acreditam e lutam pelos seus ideais.
Contacto Valéria Amorim:
[email protected]
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