Tornou-se comum o pensamento de que os bancos somente podem emprestar o que antes recebem como depósitos. O sistema financeiro assim se reduziria a um mero intermediário que repassa o dinheiro depositado por seus clientes com excesso de poupança para seus outros clientes com deficiência de poupança. O banco lucraria com a o diferencial entre taxas cobradas e recebidas. Simples, essa hipótese é muito difundida pelo imaginário popular, pela televisão, jornais e, ainda mais, pelos cursos de graduação e pós-graduação em economia. O problema central da hipótese de que o sistema financeiro não passaria de um intermediário entre poupadores líquidos e gastadores líquidos é sua falsidade. Os bancos não repassam dinheiro, mas sim criam dinheiro, dinheiro que não existia previamente na economia. A causalidade não vai dos depósitos para os empréstimos, como se o montante de crédito fosse limitado pela quantidade de dinheiro já em circulação. A causalidade opera justamente ao contrário: é a quantidade de crédito emprestado que determina o volume de depósitos à vista. Como então entender que a hipótese de que os bancos são meros intermediários persiste no imaginário tanto de economistas profissionais quanto da população em geral?
Sustento a tese de que o capitalismo precisa manter a ilusão de que o sistema financeiro se reduziria a um intermediário neutro que não pode criar dinheiro de forma privada. Isso fica patente através da ilusão generalizada de que a única organização responsável por criar dinheiro seria o banco central via impressão de novas notas. O controle monetário estaria assim assegurado e, melhor ainda, sob os auspícios do estado e não do mercado. Mas juntamente a esta ilusão se situa a realidade de que o dinheiro é sim criado por instituições financeiras privadas, de maneira independente do que deseja o banco central.
A teoria do multiplicador bancário nos fornece um excelente exemplo da ilusão a qual me refiro. A tese difundida, inclusive entre estudiosos de teoria econômica, é a de que o governo determina o total da oferta monetária através do controle direto da base monetária (“M0″) e das reservas (reserve ratio) que os bancos devem manter como proporção dos depósitos. Como os bancos emprestam diversas vezes o mesmo montante depositado, a oferta final de crédito no sistema seria uma mera multiplicação do montante inicialmente ofertado pelo banco central. O problema com teoria do multiplicador é que os bancos de fato não emprestam o que receberam antes como depósitos! Ainda mais, o banco central de fato não consegue determinar a oferta total de crédito na economia simplesmente porque a oferta final não é um múltiplo da base monetária!
Na teoria de Keynes e Minsky o dinheiro e o crédito são determinados endogenamente pelo bancos privados. O multiplicador bancário é inexistente e o sistema financeiro determina o montante de dinheiro em circulação ao determinar antes o montante de crédito adiantado. O que determina a oferta de dinheiro na economia são as expectativas de lucratividade dos bancos privados, algo bem ao largo do controle estatal da emissão de moeda.
Por que então o público continua acreditando na ilusão de que a origem do dinheiro reside na emissão de papel-moeda pelo governo federal? Essa foi uma das perguntas que tentei responder na minha dissertação de mestrado. Tentei usar a teoria marxista para mostrar como a teoria do sistema financeiro depende logicamente da teoria do dinheiro. Para Marx, o dinheiro é um fim em si mesmo que aparece como um simples e neutro intermediário para realizar transações. A ilusão da neutralidade do dinheiro como meio inverte sua determinação como finalidade e não-neutralidade. Expandi o raciocínio para afirmar que o crédito apresenta a mesma inversão: de algo que aparenta ser neutro e que funciona como mero meio para uma determinação como fim em si mesmo. O crédito, acredito eu, repete a ilusão criada pelo dinheiro de ser um intermediário neutro para as trocas.
A origem do dinheiro, em termos de sua oferta total, é sua criação pelos próprios bancos privados atráves dos empréstimos que concedem baseados em expectativas de lucratividade futura. A origem do dinheiro em circulação não é determinada pelo estado ou pelo banco central – ainda que esta ilusão seja necessária para manter o dinheiro justamente como entidade sob o controle privado do mercado. A ilusão do controle público do dinheiro se faz necessária para mantê-lo sob o de fato controle privado pelo sistema financeiro. A ilusão opera para garantir a reprodução da realidade como realidade mesma. A ilusão é um momento da realidade.
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Para quem quiser ler mais sobre como a teoria marxista pode iluminar o funcionamento do crédito, podem ler a dissertação de mestrado que escrevi em 2008.
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Para quem quiser entender a origem lógica da forma dinheiro, recomendo os escritos da professora Leda Paulani sobre a autonomização do valor. Reparem que a determinação da oferta de dinheiro e do crédito diz respeito à origem da oferta do dinheiro. O que é um problema teórico distinto do problema da determinação da origem da forma do dinheiro como forma social.
A teoria keynesiana funciona para explicar a origem da oferta de dinheiro e crédito. Mas somente a teoria marxista possui a teoria do valor para explicar a origem lógica da forma dinheiro e da forma crédito como formas de valor autonomizado. A teoria neoclássica permanece em silêncio neste caso, pois não passa de uma mera redução do capitalismo a uma economia de escambo sem dinheiro algum!
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Interessante é pensar sobre as razões ocultas na teoria das expectativas racionais dos economistas de Chicago que colocam o dinheiro como neutro justamente quando os trabalhadores americanos e europeus foram enfraquecidos na luta de classes com o advento do neoliberalismo. Clique aqui para ler um artigo que escrevi conectando a emergência do monetarismo de Friedman e da neutralidade da moeda da escola de Chicago com a luta de classes nos EUA e na Inglaterra no pós-1970.
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Para aqueles que ainda se interessarem mais pelo assunto, recomendo também a sequência de vídeos abaixo que mostra como os bancos privados criam e destroem dinheiro de acordo com suas expectativas de lucratividade futura. Novamente, atenção para o fato de que os vídeos abaixo lidam com a questão teórica da origem da oferta de dinheiro. A teoria marxista da autonomização do valor lida com a questão teórica da origem lógica da forma dinheiro. Estes são problemas teóricos distintos, ainda que fortemente correlacionados.
Neste caso, a teoria keynesiana não possui uma teoria do valor para explicar a origem do dinheiro como forma social, contentando-se em explicar somente a oferta de dinheiro criada de maneira endógena pelos bancos. Economistas keynesianos em geral contentam-se com uma teoria institucionalista do dinheiro e do crédito, na qual os laços de confiança entre os agentes seriam centrais. O problema, do meu ponto de vista, é a ausência completa de uma coerente teoria do valor. Como teorizar o dinheiro, me pergunto, sem antes teorizar o que é valor?
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