Da Senzala à Colônia - Escravos e homens pobres
Ciências Humanas e Sociais

Da Senzala à Colônia - Escravos e homens pobres


12/Dez/98
Sheila De Castro Faria
HISTÓRIA


Concluído em 1964, como tese de livre-docência apresentada na USP, publicado em 1966, "Da Senzala à Colônia" é, portanto, um livro de 32 anos de idade. A reedição significa o reconhecimento de suas qualidades. Nessa terceira edição, a autora manteve o texto na íntegra, incluindo o prefácio à segunda edição, de 1982.Um trabalho traz as marcas de seu tempo, não só das condições particulares de quem escreve, mas também das que o possibilitaram. Conforme afirma a autora no prefácio à segunda edição, em que incorpora alguns textos produzidos até aquele momento, foi fruto de "um processo coletivo de reflexão", tendo na chamada "escola sociológica paulista" sua grande inserção. "Da Senzala à Colônia" teve grande difusão, tornando-se referência historiográfica obrigatória.O livro aborda a questão da transição do trabalho escravo ao livre nas áreas cafeeiras paulistas. Mesmo após o término do tráfico atlântico, em 1850, a expansão cafeeira não diminuiu de intensidade. Ao contrário, expandiu-se em novas áreas de cultivo nas regiões com condições geográficas ainda mais propícias -incluindo a "terra roxa"-, em direção ao Oeste de São Paulo. Foram momentos diferentes de instalação de lavouras. No primeiro, contou-se com uma oferta ampla de africanos e, a partir da década de 1850, com uma lavoura já em processo de envelhecimento, com uma oferta interna, mediante o tráfico inter e intraprovincial. Um dado, no entanto, era irrefutável: esta oferta interna, admitia-se contemporaneamente, não daria conta de uma expansão que se acentuava.Tornava-se imprescindível buscar outro tipo de trabalhador. Em vez de a explicação sobre as diferenças de atitudes dos fazendeiros do Oeste novo e dos vale-paraibanos ser a "mentalidade" empresarial dos primeiros e senhorial dos últimos, foram as condições de instalação de suas lavouras que propiciaram, ou não, o apego à mão-de-obra escrava. A persistência da expansão do café, cada vez mais rentável no mercado externo, teria de prescindir do trabalho escravo. A autora insurgia-se contra as explicações puramente políticas sobre a abolição, em consonância com a ruptura da forma de se verem os processos históricos inaugurada, no sentido econômico-social, por Caio Prado Júnior.O desenvolvimento de suas argumentações passa pelas primeiras e malogradas tentativas de utilização do imigrante como mão-de-obra; as transformações nos meios de transporte; as formas e mudanças nos processos de beneficiamento do café; o final do sistema escravista; os sucessos da política imigrantista de São Paulo; as condições de vida do escravo, até desembocar na temática das idéias abolicionistas, tema mais bem desenvolvido em seus trabalhos posteriores.As marcas deixadas pelo trabalho de Emília Viotti da Costa são incontestáveis. Basta passar os olhos pela produção historiográfica dos últimos 30 anos sobre lavoura cafeeira e abolicionismo para se perceber sua influência marcante. Mas, como processo quase natural, a história e suas interpretações não ficaram estáticas durante todo esse tempo.Já no prefácio à segunda edição, a autora tenta responder algumas críticas e desenvolver argumentações sobre pontos que se mostraram controversos. São vários. Elegerei somente alguns deles. Certamente, por se tratar de um trabalho que se propõe a analisar a mão-de-obra, os escravos tiveram papel destacado. Nesse aspecto, as contestações foram mais acirradas nos últimos anos, justamente por estar a autora inserida num grupo -composto por Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Roger Bastide, Fernando Henrique Cardoso- que tinha formas similares de interpretar a vida no cativeiro.É especialmente por essas contestações que a análise mais frágil do livro de Emília Viotti é, para a historiografia atual, a que trata das condições de vida dos escravos. Baseada quase que exclusivamente em relatos de viajantes, a falta de crítica a essa fonte (deslize comum a vários outros grandes pesquisadores de nossa história, a começar por Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior) enfraquece suas conclusões. Em momento algum a autora levou em conta os juízos de valor presentes nos depoimentos, tomando-os como relatos fiéis da realidade no cativeiro.Assim como outros estudiosos da época, a autora interpreta a escravidão como um engenho a retirar do africano suas tradições, sua concepção de mundo, enfim, sua humanidade. Tornou-o "promíscuo", mas não só no sentido sexual -também no religioso, social e político. Mas, é necessário reconhecer, dentre eles é a que menos enfaticamente reifica o escravo.Vários pesquisadores, destacando-se Robert Slenes, puderam questionar, com base em pesquisas demográficas, e mesmo mediante uma decisiva crítica aos relatos de viajantes, as concepções que coisificavam os escravos. Tende-se, hoje, a considerar o papel ativo que desempenharam na construção de suas próprias histórias, divergindo da visão que os tratava como massas inertes moldadas pelos humores e conjunturas senhoriais.É precisamente a concepção do escravo-objeto o ponto mais questionado da terceira e última parte do livro, onde aborda o processo abolicionista. Nele, incorpora os interesses econômicos dos proprietários de lavouras em expansão, notadamente os cafeicultores paulistas das áreas mais novas, o processo de urbanização de algumas províncias e a ampliação com diversificação de atividades de certas cidades. O resultado foi uma progressiva diminuição do comprometimento de uma parcela significativa da sociedade com a escravidão. Emília Viotti só deixou de contemplar os escravos -objetos diretos das ações- nesse processo. Outros o fizeram, mais recentemente, como Sidney Chalhoub ("Visões da Liberdade"), Hebe Mattos ("Das Cores do Silêncio") e Maria Helena Machado ("O Plano e o Pânico").Há outros aspectos pontuais em seu trabalho que podem ser questionados. Um deles é a idéia de que Minas Gerais teria prescindido de soluções para o problema de acesso à mão-de-obra, após a abolição do tráfico e montagem da agroexportação cafeeira, por se ter beneficiado da liberação de escravos das áreas mineradoras decadentes. Trabalhos posteriores, destacando-se o de Kenneth Maxwell, demonstraram que, concomitante até mesmo com a mineração, no século 18 e, principalmente, no século 19, grande parte dos escravos estava distante dos setores agroexportadores. Mesmo com ouro ou café, havia uma significativa produção escravista voltada para um mercado interno de alimentos.Emília Viotti da Costa mantém-se fiel ao tema da escravidão, conforme pode ser constatado em "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue - A Rebelião dos Escravos de Demerara em 1823", recentemente publicado no Brasil, onde apresenta uma documentação invejável sobre a vida e as visões dos e sobre os escravos.Se, na década de 60, os escravos despertaram o interesse de sociólogos e historiadores, não foi o caso dos homens hoje comumente designados na historiografia como "livres e pobres". Com exceção do trabalho de Victor Nunes Leal ("Coronelismo, Enxada e Voto"), de 1949, que analisou essa camada social pelo viés clientelístico da República Velha, nada havia que descortinasse a vida desse grupo social. Caio Prado Júnior, em "Formação do Brasil Contemporâneo", desconsidera sua existência social e política. Pelas condições precárias de existência e ausência de normas de conduta, não poderiam ser considerados como "povo". Em termos econômicos, seriam inadaptados e inúteis. Apesar de tudo, reconhece sua representatividade numérica.Gilberto Freyre, em "Casa Grande e Senzala", nem mesmo quantitativamente os concebe, denominando-os de "lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos (senhores e escravos)". Foi na tentativa de apreender seu modo de vida e de inserção na sociedade que "Homens Livres na Ordem Escravocrata", de Maria Sylvia de Carvalho Franco, transformou-se num clássico de nossa historiografia. Mesmo que a autora não goste dessa gentil e reconhecidamente elogiosa qualificação, um clássico é sempre uma leitura obrigatória.Apresentado em 1964 como tese de doutoramento na USP, foi publicado em 1969. A quarta edição, que agora acontece, reafirma-o como referência para a busca de novas fontes e interpretações sobre os meios de vida e condições sociais dos "homens livres pobres" em meio à hegemonia do trabalho escravo. Maria Sylvia insere-os na teia de relações de dominação que vigiam durante o século 19, com todas as sua implicações. Analisa-os dentro da sociedade que os criou, mesmo que de uma forma excessivamente perversa.Mais recentemente, alguns historiadores, como Laura de Mello e Souza ("Desclassificados do Ouro"), Hebe Castro ("Ao Sul da História") e Peter Eisenberg ("Homens Esquecidos"), entre outros, empreenderam esforços para descortinar o cotidiano social dos "marginais", "desclassificados" e "apartados" da sociedade de então.Precursora, inclusive, da utilização de um tipo de fonte pouco usual entre historiadores -os processos-crime-, Maria Sylvia investe num significado de liberdade que referenda a sociedade escravista que a cerca. A preponderância da dominação está sempre presente em suas análises, não sobrando muito espaço para as atitudes autônomas dos livres que se vinculavam aos grandes produtores. É de São Paulo que trata, no século 19, a província que maiores oportunidades apresentava para o investimento na agroexportação cafeeira.Aparecem em seu trabalho os tropeiros, vendeiros, agregados, camaradas e sitiantes, categorias sociais tradicionalmente vistas pela historiografia como "despossuídas" de bens. Essa é uma das questões que se pode, hoje, contrapor aos argumentos da autora. Em pesquisas recentes, baseadas principalmente em inventários "post-mortem", com dificuldade alguns dos que exerciam essas atividades poderiam ser considerados como "despossuídos". Ao contrário, amealharam um conjunto significativo de bens para se inserirem na elite econômica do período escravista. Refiro-me, especialmente, aos tropeiros e, em certos casos, aos vendeiros.Isso não significa dizer, entretanto, que essas categorias sociais fizessem parte de uma elite social ou política. Ao contrário, poderiam ser, como muitos o foram, detratados pelos que a elas se referiam. O "defeito mecânico", de origem feudal, ainda fazia suas vítimas, mesmo no século 19. Mas não significa, absolutamente, que fossem "despossuídos".Mesmo aceitando a idéia de que social e politicamente os "homens livres pobres" estavam subordinados aos "homens bons" do período escravista, é bem pouco provável que eles próprios tivessem disso uma percepção muito clara. Além do mais, é preciso levar em conta o princípio básico de reciprocidade entre os interesses envolvidos. Se havia uma sujeição à dominação, havia também o objetivo de ganhos precisos e conscientes por parte dos "dominados". Eles tinham margens de opção, pois inúmeros outros, das mesmas categorias sociais tratadas pela autora, não se vinculavam diretamente aos grandes produtores cafeeiros.É justamente por inexistir uma visão antropológica -o reconhecimento da lógica do "outro"- que Maria Sylvia nos dá a impressão de estar tratando de homens-objeto, sem vontade própria. Como consequência, a interpretação mais presente em seu trabalho é a do "código do sertão" -a violência cotidiana que ela atribui aos que integram essa camada livre e supostamente pobre da população. É um estigma que persegue os homens tidos como pobres até hoje, como se fosse sempre pela força física que eles solucionam as batalhas cotidianas.Já é crítica comum o fato de a pesquisadora ter-se baseado em processos-crime para fazer o perfil desse segmento estigmatizado da população do período escravista. A principal questão era, e é, a seguinte: trabalhando com processos-crime, o que poderia ser esperado, além de violência? Se existe crime, existe o que denominamos de violência. Pobres não são violentos porque isso faz parte de seus códigos culturais. Pobres são aparentemente mais violentos porque, demograficamente mais numerosos que os ricos, são enquadrados em crimes puníveis pelas leis vigentes no momento. Podemos questionar se esses homens, no seu cotidiano, sem crimes, seriam tão violentos quanto nos retratam a fonte abordada. Mais ainda: em que eles poderiam diferir de uma elite que também cometia crimes, inclusive passionais, mas que detinha mecanismos infinitamente mais poderosos de ocultamento da transgressão?Em suma, é preciso reafirmar: "Homens Livres na Ordem Escravocrata" é leitura obrigatória para qualquer sociólogo, antropólogo ou historiador que tenha como objeto de estudo as camadas tidas como pobres de qualquer sociedade, independentemente do grau de fortuna que porventura pudessem adquirir. Instigante, continua a despertar interesse pela força dos argumentos, das fontes arroladas e pela forma academicamente irretocável de apresentação.

Sheila de Castro Faria é professora de história da Universidade Federal Fluminense e autora de "A Colônia em Movimento" (Nova Fronteira).

Folha de São paulo



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