Crack a droga da morte
Ciências Humanas e Sociais

Crack a droga da morte



Nelson* é médico, vai fazer 51 anos e tem dormido numa cela de menos de 20 m² no Presídio Regional de Joinville. Divide o espaço com um traficante, um assaltante e um homem que agrediu a companheira. Torce para sair dali logo, mas não reclama.

— Quando não acontece nada, você vai indo. O crack ainda não era a minha religião, mas poderia começar a ser.

Ele foi preso em junho por policiais militares. Estava com duas mulheres, numa casa na zona Sul de Joinville. A PM apreendeu cerca de dois gramas de crack com eles (mais oito dentro da casa), dinheiro e uma balança de precisão. Hoje, Nelson responde a processo judicial — é acusado de tráfico.

Antes disso, foi casado (está em processo de divórcio). Tem um filho adolescente. A família sempre teve um bom padrão de vida. Nelson fazia plantão em hospitais e tinha uma clínica. Ele mesmo acha difícil acreditar que o que começou com o uso esporádico de cocaína (que conheceu na faculdade) tenha descambado para o crack.

Nelson fumou pedra pela primeira vez há três anos. Na época, o casamento ia mal e sua rotina já incluía sair à noite, em geral para procurar a companhia de “mulheres de rua”. Ele diz ter experimentado o crack com uma delas.

— Com 50 anos, você tem medo de muito pouca coisa.

Aos poucos, foi trocando a cocaína pelo crack. O uso ficou mais intenso há sete meses.

— Tive um estresse agudo, a crise conjugal se agravou. Peguei uma licença e fiz o diabo.

Chegou a ficar até três dias sem dormir, fumando crack. Sempre era mais velho e mais bem informado do que muitas pessoas de quem comprou a droga — ou mesmo do que as pessoas com quem compartilhou o uso. Ele diz que 90% das pessoas que encontrava no lugar em que foi preso eram “desqualificados”. Mas a droga os fazia falar a mesma língua.

— Foi uma coisa incrível, você se adaptar a uma tribo — reconhece.

Adaptação em termos. Nelson nunca gostou de fumar crack em casas abandonadas ou de terceiros, na companhia de outros usuários. O papo o irritava.

— Ficava aquele bando olhando para a cara do outro e falando de droga. Era sempre ‘a de ontem tá melhor que a de hoje, essa é mais barata que aquela.

Via os outros ficarem paranoicos. Diz que nunca delirou desse jeito. Também se surpreendia com as “mesquinharias” que os dependentes eram capazes de fazer para garantir sua pedra. E com o grande número de meninas que “se afundam” ainda mais que os homens — em vez de furtar, optavam por se prostituir.

— Minha história é outra. Era uso de droga do mesmo jeito, mas num outro cenário.

Quando deixou de trabalhar, no ano passado, faltou dinheiro e Nelson teve de “vender as coisas”. Mas ele não se considera dependente. Ele usava crack em hotéis, nunca sozinho, cerca de duas vezes por semana. Diz que não se drogava sabendo que teria de trabalhar no dia seguinte. Conheceu a fundo o que considera o “Centro podre” de Joinville: as ruas Itajaí, Jerônimo Coelho, das Palmeiras, Rio Branco e Treze de Maio. E na zona Sul, a rua Santa Catarina e os bairros Anita Garibaldi, Itinga e Profipo. Ouviu meninas dizendo que não queriam mais nada além de crack.

— Era chocante.

Nelson agora é “réu preso”, determinou a Justiça em 18 de junho. Ele vai ter de responder por crime de tráfico (mesmo alegando que nada do que foi apreendido lhe pertencia). Um pedido de liberdade provisória foi negado pelo juiz. Enquanto isso, ele ajuda a organizar a farmácia do presídio.

O médico tem esperanças de que vai sair logo. Pretende parar de medicar. Quer tentar a área de pesquisa, quem sabe fazer um doutorado. Apesar de tudo, ainda não pensa em procurar ajuda.

*Nome fictício.




*Camille Cardoso




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