Identidades Culturais e Globalização
Karina KuschnirConsumidores e Cidadãos: Conflitos Multiculturais da Globalização de Néstor Garcia Canc1ini. 23 ed. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1996.
"A França pode deixar de produzir batatas e continuar sendo a França, mas se deixarmos de falar francês, de ter um cinema, um teatro e uma literatura própria, nos converteremos em mais um bairro de Chicago."l Esta frase daria uma boa epígrafe para este livro de Néstor Garcia Canc1ini, pois resume sua preocupação central: como se mantêm as identidades culturais no contexto da globalização? Para o autor, é preciso rever radicalmente as noções de identidade e cidadania nesses tempos em que os países, principalmente os mais subordinados como os da América Latina, correm o risco de se tornar todos "subúrbios norte·americanos" .
C07lSumidores e cidadãos, que é na realidade uma coletânea de dez artigos do sociólogo mexicano, mostra como o processo de globalização, baseado nos modelos econômicos e políticos neoliberais, fortalece os meios de comunicação de massa como principal fonte de consumo da maioria da população (principal-mente das classes populares). Em decorrência disso, enfraquecem-se as culturas locais, assim como os instrumentos de participação política tradicionais, como partidos, sindicatos e movimentos sociais. Os meios de comunicação, sejam os mais antigos, como o rádio, a TV e o cinema, sejam os pós-modernos, como o fax, as TVs a cabo, o celular, passam a funcionar cada vez mais como o espaço público dentro das sociedades globalizadas. O fortalecimento crescente desses espaços multimídia, transnacionais, agiria, segundo o autor, em detrimento das identidades locais, enfraquecendo as culturas tradicionais.
Esse processo só pode ser compreendido através de estudos multidisciplinares, com participação de várias áreas acadêmicas, como antropologia, sociologia, comunicação e psicologia. CO/lSumidores e cidadãos demonstra a familiaridade do autor com a produção acadêmica de diversos países latino-americanos, principalmente a do Brasil. Um dos méritos do livro é justamente o embasamento empírico que sublinha suas fOlluulações. Canclini foi coordenador de várias pesquisas no México e em outros países da América Latina e, nos artigos deste livro, se utiliza principalmente de pesquisas sobre "os novos espectadores" latino-americanos e sobre um grande festival cultural realizado na Cidade do México em 1991.
Um dos resultados importantes desses trabalhos é a constatação de que está ocorrendo uma crescente substituição dos espaços de divertimento públicos por espaços privados. Na prática, isso significa que as pessoas vão cada vez menos a cinemas, teatros e espetáculos, e assistem cada vez mais a vídeo e a TV a cabo.
Na Cidade do México, por exemplo, de 1.500 pessoas entrevistadas, 41,2 % não tinham ido ao cinema no último ano, assim como 62,5% e 89,2% não foram ao teatro ou a concertos, respectivamente. Esse baixo índice de "uso coletivo do espaço urbano" se contrapõe ao alto índice de consumo de divertimento doméstico. Na mesma cidade, 95% da população vê diariamente televisão, 87% escuta rádio e 52% tem videocassete (p. 77). O fenômeno, para Canclini, é conseqüência direta do processo de globalização. Nesse campo, a indústria de bens culturais norte-americana é uma das forças hegemônicas, sendo a maior produtora dos bens consumidos através desses circuitos de infolluação de consumo particular, como rádio, TV e vídeo. Nas locadoras mexicanas, por exemplo, 80% das fitas de vídeo são norte-americanas, enquanto nas TVs, a programação pode chegar a 95% de produções importadas dos Estados Unidos.
Segundo Canclini, o maior acesso aos bens materiais e simbólicos, resultado do processo de abertura das fronteiras nacionais, "não vem junto a um exercício global e pleno da cidadania" (p. 30), porque o processo de globalização vem sendo acompanhado de um crescente desinteresse pelo espaço público e, conseqüentemente, pela participação política. A política passa a ser submetida às regras do comércio e da publicidade, sendo transformada em algo que se consome e não mais algo de que se participa (p. 20). A participação ficaria restrita, cada vez mais, a uma elite tecnológico-econômica, detentora dos espaços decisórios e, por isso mesmo, apta a consumir e a produzir produtos culturais mais sofisticados, enquanto a massa se conforma em ser apenas "cliente" (p. 28).
Para o autor, porém, o ato de consumir não se resume à aquisição de produtos. Longe da visão de que o consumo seria apenas a realização irracional de desejos fúteis, Canclini demonstra como o ato de consumir envolve processos socioculturais mais amplos, onde se dá sentido e ordem à vida social e, principalmente, onde se constroem as identidades neste mundo pós-moderno. O autor lembra que os gastos suntuosos estão quase sempre associados a' rituais e celebrações, como, por exemplo, aniversários e festas, muitas vezes de caráter religioso.
Consumir seria, nesse contexto, um "investimento afetivo" e não um simples gasto monetário; os bens, por sua vez, seriam "acessórios rituais", dando sentido ao "fluxo simbólico" da vida social. O autor conclui: "consumir é tomar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora" (p. 58-59).
Isso explicaria por que as classes subalternas agem freqüentemente "contra seus próprios interesses". Canclini pergunta: "por que as maiorias votam em governantes que as prejudicam?" (p. 192). A resposta está justamente nessa transformação das fronteiras entre público e privado. Ao votar, as pessoas estariam penas "consumindo" mais um produto da indústria cultural, que lhes chega através dos aparelhos de Tv. Políticos como Menen, Fujimori e Collor seriam exemplos paradigmáticos desse fenômeno. O candidato-governante se expõe na mídia não como um homem público, mas como um apelo ligado ao virruosismo do "corpo e do consumo", mais adequado às narrativas intirnistas com as quais o novo espectador "global" está habituado. Assim, o presidente é como um herói de seriado de TV, que voa em aviões supersônicos, luta caratê, anda de moto, passeia a cavalo, e é "consumido" como tal.
Diante dessa subordinação da política à mídia, os espaços tradicionais de negociação, como partidos, sindicatos, greves, manifestações públicas, estariam fadados ao enfraquecimento. Mas não é só a política que perde com a participação cada vez menor das massas. A produção culrural das localidades específicas também se toma menos imponante diante da indúsrria cultural global, preponderantemente none-americana. O cinema é um dos meios mais atingidos. Não se consegue mais recuperar o investimento de filmes apenas com o produto das bilheterias, pois as pessoas, como vimos, vão cada vez menos aos cinemas. No contexto da globalização, a viabilidade das produções cinematográficas está condicionada tanto ao sucesso em platéias de diversos países, quanto ao sucesso de seus subprodutos, como fitas de vídeo, produtos de papelaria, brinquedos, CDs etc. O alto investimento necessário faz com que geralmente as produções latino-americanas não tenham chance de competir
nesse mercado.
O filme mexicano Como água para chocolate é exceção nesse contexto.
Com uma produção barata, a história alcançou sucesso internacional acima das expectativas. Para Canclini, o exemplo serve justamente para mostrar que casos assim só podem mesmo ser raros e que servem apenas para confirmar as regras do processo mais amplo. Por outro lado, o autor chama a atenção para a narrativa que está sendo "exponada" do filme para o mundo. O México da história é exótico, emocional, melodramático, privado. São, mais uma vez, os valores dos espaços tradicionais de sociabilidade que são objeto dos espetáculos da mídia.
Para o autor, enquanto se dão as políticas de explosão das fronteiras econômicas,
como no Mercado Comum Europeu, os indivíduos particulares estariam cada vez mais interessados em reforçar os laços primordiais, da casa, da família, do pequeno círculo de convivência, longe do "contrato social" e das "estruturas sociopolíticas" (p. 239).
Um bom momento do livro é quando o autor relata uma entrevista feita com um estudante boliviano, recém-chegado à universidade na Cidade do México. Perguntado sobre a importância de falar o quéchua, sua língua materna, o rapaz responde que não fala, porque não é "útil" e porque "a tendência é fazer coisas que sejam práticas no cotidiano" (p. 236). Neste ponto, Canclini chama a atenção para o fato de que a continuidade do grupo não depende da valorização dos traços de identidade coletiva, como a língua nativa, no caso do estudante. Os ideais de "identidade nacional", que forneceriam uma identidade ao grupo, perdem espaço para as identidades fragmentadas, segundo os arranjos dos diversos grupos. Essa preferência explicaria também o gosto popular tão fone na América Latina por produtos culturais como a telenovela.
Como essa identidade, cada vez mais fragmentada pela ausência de um espaço público atuante, em que se pense a nação como totalidade, pode ser alvo de políticas públicas? Esse é um dos problemas centrais tratados por Canclini ao longo do livro: De seu ponto de vista, um dos desafios da era atual é o de "revitalizar o Estado como representante do interesse público, como árbitro ou assegurador das necessidades coletivas de informaçao, recreação e inovação, garantindo que estas não sejam sempre subordinadas à rentabilidade comercial" (p. 254). Dessa forma, países fora do eixo tecnológico-econômico, como os da América Latina, poderiam sobreviver ao processo de globalização sem deixar esvaziar sua cultura e identidade próprias.
Consumidores e cidadãos é um livro politicamente correto e engajado.
Sendo assim, Canclini está preocupado em fornecer contribuições efetivas para aprimorar o exercício da cidadania nos grandes centros urbanos, principalmente nos latino-americanos. Boa pane do livro é dedicada à formulaçao de políticas eficazes que se contraponham ao processo mais amplo de esvaziamento do espaço público tradicional e de empobrecimento causado pelo consumo culrural "americanizado".
A seu ver, os Estados devem produzir políticas "multissetoriais", de acordo com a diversidade de gostos, tradições e identidades urbanas, combinando local e global. Deve-se promover a "compreensão e o respeito das diferenças na educaçao e nas interações tradicionais", utilizando os meios de comunicação para desenvolver o conhecimento recíproco dessas diferenças (p. 215). Para Canclini, a integração latino-americana é um recurso indispensável para expandir mercado e produção audiovisual próprios. O autor propõe, inclusive, que se instiruam mecanismos que protejam a circulação e o consumo desses bens culrurais, com incentivos como a criação de um "fundo latino-americano de produção e difusão audiovisual", dentro de acordos de livre-comércio mais amplos, como o Mercosul (p. 216). Só assim seria possível a1cançaullos uma cidadania que "não se constirui apenas em relação a movimentos sociais locais, mas também em processos de comunicação de massa" (p. 1J5).
NotaJ. A frase foi dita por um delegado francês durante a reunião do GA TI, em dezembro de 1993, e é citada pelo autor (p. 163).
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