Ciências Humanas e Sociais
Consumidores de todos os países, uni-vos!
A greve selvagem dos trabalhadores da Opel ( nos meados do mês de Outubro de 2004) representa uma tragédia real que acaba por irromper nas nossa vidas e nos jornais das televisões: o afundamento de todo um sistema. Pode-se observar ao vivo uma das mudanças mais importantes da história do poder: o derrube da teoria clássica da dominação tal como foi exposta pelos textos de Max Weber – uma mudança que vai, aliás, permitir às empresas multinacionais maximizar o seu poder. Com efeito, o meio de pressão dos investidores já não é a ameaça de uma intervenção, mas antes a ameaça de uma não-intervenção, isto é, a ameaça de se retirarem. Daqui em diante, pior que a invasão pelas multinacionais, só a ameaça de não ser invadido por elas.
Uma tal forma de dominação não deriva da execução de certas ordens, mas da possibilidade de investimentos mais vantajosos noutros países, e, logo, a ameaça de não investir num certo local. O novo poder dos grandes grupos não repousa pois, como acontece com o Estado, no recurso à violência para obrigar alguém a actuar tal como se pretende. Daí se dizer que este poder é mito mais suave, pois não se exerce sobre um determinado lugar, mas é exercido em todo o mundo. O potencial da chantagem de que este poder se reveste adequa-se à lógica dos negócios económicos: dizer sempre não em todo o lado, não investir, e sem sentir sequer a necessidade de justificar publicamente os seus actos – este é a principal característica dos actuais actores da economia mundial.
E é isto que explica o descontentamento crescente que a política e a democracia suscitam: os eleitos que votamos ficam sentados como se fossem espectadores, impotentes e desamparados, enquanto aqueles que não foram eleitos tomam as decisões-chaves que influenciam as nossas vidas.
O chanceler alemão Schroder não é único a acusar os grupos multinacionais de adoptarem comportamentos antipatrióticos, mas a verdade é que esta acusação é absurda. Ela pertence a um mundo que já não é o actual e só mostra uma vez mais até que ponto os responsáveis políticos não conseguem compreender o seu papel nem o de todos nós, em plena modernidade deste mundo globalizado.
Grupos alemães como a Siemens e a BMW realizam dois terços ou três quartos do total do seu volume de negócios nos países estrangeiros – o que é bom para o emprego desses países, e mau para o emprego na Alemanha, bom para os lucros daqueles grupos, e mau para os impostos alemães. A ameaça de desemprego na Opel mostra involuntariamente o absurdo das políticas económicas nacionais. Apelar aos dirigentes políticos nacionais, nestas circunstâncias, significa pedir a estes para salvar os grandes grupos, os quais preferem transferir os empregos para o estrangeiro e baixar os custos de produção.
Os trabalhadores – que tentam revoltar-se contra a nova ordem económica mundial recorrendo à antiga arma , a greve, que se revela agora suicidaria - chama-nos a atenção para um facto cujo significado não pode ser negligenciado: enquanto persistirmos em adoptar uma perspectiva nacionalista, jamais compreenderemos o mundo. Os trabalhadores estão a descobrir dolorosamente que o mundial e o local estão directa e indefectivelmente ligados para além de todas as legislações e resoluções tomadas pelo Estado nacional. Por isso é que é preciso uma nova perspectiva – que eu designo por «um olhar cosmopolita» - para compreender estas importantes mudanças que se estão a produzir nas nossas vidas e que colocam em risco os nossos meios de subsistência.
Será possível construir um contra-poder ao capital que opera à escala global? Sim, é possível, através de um movimento social baseado no conceito de «consumidor político» Uma decisão de compra traduz-se hoje num boletim de voto com o qual o comprador-consumidor emite a sua opinião sobre a orientação e a política dos grandes grupos. O enorme poder das multinacionais de não investir tem um equivalente do outro lado, nas mãos dos indivíduos e dos movimentos internacionais de boicote, que é o de não comprar . Ora será fatal ao capital global que se mostra extremamente móvel o facto de não possuírem nenhuma estratégia para se oporem as crescente contra-poder dos consumidores. Os poderosos grupos mundiais mostram-se impotentes, pois não podem despedir os seus clientes! Ameaçar deslocalizar para outros países, em que os consumidores são ainda mais intervenientes, acabará por se revelar suicidário. Na verdade, organizadas em redes transnacionais, os consumidores podem constituir um poderoso conta-poder.
As empresas multinacionais obtêm grandes lucros graças à globalização do consumo, mas ao mesmo tempo este facto é o seu calcanhar de Aquiles. E Não será de espantar que estes movimentos sociais possam atacar a legitimidade destes lucros e acabar por impor certos acordos às multinacionais relativos às questões dos direitos do homem, do ambiente, da segurança social, e do emprego.
Estados ,municipalidades, sindicatos, trabalhadores devem retirar esta conclusão: actores sociais isolados, nacionais, revelam-se impotentes frente à empresas multinacionais. Só por meio da sua união através de uma estratégia internacional é que eles poderão recuperar o poder de outrora, que perderam com a globalização. Ora este acaba por ser também o segredo da União Europeia: a cooperação entre os Estados, não diminui o seu poder, antes o reforça. Ou seja, chegamos a este paradoxo: a renúncia à soberania acaba por fazer aumentá-la.
Ulrich Beck, sociólogo alemão, professor na Universidade de Munique e da London School of Economics, e autor do conhecido ensaio “ A sociedade do risco”.
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