CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
de Washington
A leitura integral de ''Em Busca do Tempo Perdido'' é empreendimento sofrido e arriscado. Exige determinação, paciência e esforço intelectual. Mas, quando bem sucedido, muito compensador, como atestarão quase todos os poucos felizes que o realizaram.
Em 1997, duas pessoas inteligentes e sensíveis que escalaram o topo do Everest da literatura escreveram sobre como ''Em Busca do Tempo Perdido'' as afetou.
Um é muito jovem (28 anos), o romancista Alain de Botton, autor de ''How Proust Can Change Your Life'' (Como Proust Pode Mudar Sua Vida). A outra, a crítica literária Phyllis Rose, que assumiu uma cátedra na prestigiosa Wesleyan University no mesmo ano em que Botton nasceu, autora de ''The Year of Reading Proust'' (O Ano de Ler Proust). Seus trabalhos sobre Proust são espirituosos, criativos e muito instigantes.
Mas bastante perigosos. Numa época em que a superficialidade e o modismo são imperativos sociais será muito tentador para milhares de pretensiosos ler Botton e Rose e fingir que enfrentou Proust.
Outro risco desses dois livros é o da banalização de uma das obras de arte mais importantes da história humana. O trivial tende a se tornar mais importante do que o conteúdo. Os detalhes da vida pessoal de Proust, que fazem sentido em biografias exaustivas, como as de Ronald Hayman e George Painter, acabam em trabalhos menores como esses, servindo apenas para cristalizar na imagem do público médio, aquele que identifica o nome de Proust, mas jamais sentirá disposição de sequer iniciar sua leitura, o aspecto bizarro do autor que ficou no imaginário coletivo: o homossexual doentio, cheio de obsessões psicóticas, que quase nunca saía de casa e escrevia compulsivamente até se esvair.
Este caráter de exploração do anedótico em Proust é particularmente sentido em ''How Proust Can Change Your Life''. A idéia de Botton é boa. O título é sedutor. Seu texto é fluido. Mas o resultado final é decepcionante para quem leu Proust. A idéia de que se possa extrair de ''Em Busca do Tempo Perdido'' um receituário genérico para se melhorar a vida só pode ser encarada a sério como brincadeira. Como qualquer grande romance lido por uma pessoa arguta, ''Em Busca do Tempo Perdido'' pode iluminar a mente para o leitor compreender melhor os seus próprios problemas e até tomar eventuais decisões. Mas usar Proust para aprender a ''sofrer com sucesso'', ''ser um bom amigo'' ou ''ser feliz no amor'', francamente é demais. O pobre Marcel perderia a compostura se tivesse sido obrigado a topar com isso.
Muito menos ofensivo ao senso comum é ''The Year of Reading Proust''. Phyllis Rose não se propõe nem a interpretar Proust para os outros nem a mostrar como a leitura de ''Em Busca do Tempo Perdido'' modificou sua existência. Limita-se a contar, com verve, autocrítica e bom humor, como foi o ano em que ela, afinal, após muitos anos de tentativas frustradas, conquistou Marcel ou se deixou conquistar por ele.
Trata-se de um livro de memórias que, apesar de descrever acontecimentos absolutamente banais do cotidiano de uma intelectual de classe média nos EUA do final do século 20, pode _além de constituir passatempo divertido_ criar elos de conexão entre os problemas da autora e do leitor e, com isso, como Proust, clarear pontos obscuros na mente de quem lê.
A presença de Proust no livro de Rose é indireta. Talvez a própria criação do livro e muito do seu estilo e conteúdo se devam a ele. O ano em que se leu Proust é decisivo na vida de quem o fez. Os acontecimentos pessoais conectados a essa extraordinária aventura intelectual ganham dimensão única. É o que Rose deixa transparecer.
Em vez de tentar, como Botton, oferecer técnicas de aprendizado de Proust e de aplicação de seus ensinamentos na vida do leitor, Rose apenas relata o que aconteceu com a sua própria vida enquanto lia Proust, as relações entre os ambientes, os personagens e os pensamentos de ''Em Busca do Tempo Perdido'' e os dela mesma.
Pode-se argumentar que, ao usar o nome de Proust no título de um livro que trata dele apenas marginalmente, Rose tentou _como tantos antes na indústria editorial (há à disposição do apaixonado por Proust desde livros de receitas das comidas citadas em ''Em Busca do Tempo Perdido'' até de crítica musical das peças descritas no livro)_ apenas ganhar destaque às custas de Marcel. Será que com qualquer outro título as memórias de Rose mereceriam resenhas do ''New York Times'' à Folha? Provavelmente não. Mas também é verdade que o uso do nome de Proust corta dos dois lados.
Rose tem sido ridicularizada injustamente em muitas das críticas a seu livro apenas por causa de Proust. O ressentimento intelectual dos que não conseguem ou nem se aventuram a ler Proust contra aqueles que o fizeram é enorme e por vezes se utiliza dos mais baixos padrões retóricos.
De qualquer maneira, os livros demonstram que o trabalho de Proust continua sendo importante e atual. Para os iniciados, ambos são curiosos e merecem a sua atenção. Para os que ainda não leram Proust, é recomendável prudente distância do livro de Botton, que pode estragar a experiência posterior. Cada leitura de Proust é única. Não há regras gerais que se apliquem a ela. Vale a pena esperar, às vezes, os 20 anos aguardados por Rose, até se chegar ao momento certo da vida (ou, quem sabe, aos momentos certos) para se usufruir ao máximo dessa rara experiência existencial.
Folha de São Paulo
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