Coalizões Sul-Sul e negociações multilaterais
Ciências Humanas e Sociais

Coalizões Sul-Sul e negociações multilaterais


Coalizões Sul-Sul e negociações multilaterais

Pedro Feliú Ribeiro

Mestre em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (Caeni) da USP. E-mail: [email protected]

OLIVEIRA, Amâncio; ONUKI, Janina (Org.). Coalizões Sul-Sul e as negociações multilaterais: os países intermediários e a coalizão IBSA. São Paulo: Mídia Alternativa, 2007, 224 páginas.

O livro Coalizões Sul-Sul e as negociações multilaterais: os países intermediários e a coalizão IBSA, organizado por Amâncio Oliveira e Janina Onuki, busca compreender fundamentalmente a iniciativa IBSA (sigla, em inglês, para Índia, Brasil e África do Sul), além de contribuir para o entendimento das coalizões entre países em desenvolvimento de um modo geral. O foco central do livro está no fator interesse e não convergência de identidades, produzindo análises por meio da teoria dos jogos, processo decisório político-burocrático e ação coletiva e formação de coalizões. Este aspecto conduz os argumentos em uma linha claramente institucionalista, pouco abordada no tema, sendo talvez esta a principal contribuição do livro para os estudiosos do assunto, na medida em que abordagens cujo cerne é a estrutura de poder do sistema internacional ou a construção social de identidades internacionais já possuem um conjunto maior de trabalhos. O livro é uma coletânea e está organizado em cinco capítulos de distintos autores.

O primeiro capítulo centra sua análise na coalizão IBSA. A constituição desta coalizão internacional conformada por Índia, Brasil e África do Sul possui um caráter visivelmente contra-intuitivo na medida em que Brasil e Índia possuem preferências substantivamente divergentes na agenda multilateral, fundamentalmente quando o assunto é agricultura. Enquanto Brasil e África do Sul possuem uma postura ofensiva (liberalizante) em temas agrícolas, por exemplo, a Índia revela um posicionamento muito mais defensivo (protecionista).

Na excelente revisão da literatura elaborada pelos autores, encontramos diversas variáveis explicativas para a formação de coalizões de distintas matrizes teóricas. Dentre elas, destacam-se: a coesão ideológica dos membros, a assimetria e simetria de poder entre os membros, coalizões motivadas por um tema específico, coalizões motivadas por temas mais abrangentes, compartilhamento de interesses, capacidade de ofertar incentivos seletivos, o tamanho do grupo, a emergência de um empresário político capaz de arcar com os custos da ação coletiva e o grau de interdependência entre as partes acordantes. A questão central no estudo das coalizões internacionais do tipo Sul-Sul seria detectar as bases estruturais das mesmas, em outras palavras: há propriamente uma agenda internacional do Sul? Se há, ela é normativa (princípios) ou amparada substantivamente pela convergência de interesses?

A pergunta a ser respondida pelos autores neste capítulo é: a coalizão IBSA inscreve-se em uma rationale institucional-liberal, fundamentada na interdependência econômica dos membros e convergência de interesses ou em uma rationale de cunho mais estratégico-ideológico? A resposta a esta pergunta se centra na análise empírica do posicionamento (preferência revelada) dos três países na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização Mundial do Comércio (OMC), em um período de onze anos (1994 a 2004). Utilizou-se, para medir o grau de convergência ou divergência das preferências, o índice de correlação bivariada entre dois países.

A análise empírica deste estudo revela que os interesses internacionais de países-chave do mundo em desenvolvimento (IBSA), embora acomodáveis, são significativamente distintos. Assim, como argumentam os autores, os dilemas da ação coletiva desta coalizão são superados graças à equalização de elementos exógenos e defensivos, no âmbito tanto do comércio internacional quanto da segurança internacional.

A problematização central do segundo capítulo é responder a seguinte pergunta: qual foi o fator determinante para a mudança de posicionamento da Índia acerca das negociações na OMC pré-Doha e pós-Doha? A resposta oferecida por Surupa Gupta, autora do capítulo, encontra-se na análise dos fatores domésticos indianos, mais especificamente o jogo político-burocrático e a nova relação que se estabeleceu entre o Ministério do Comércio e Indústria e os grupos de interesse indianos.

Para compreender a mudança no posicionamento negociador indiano na OMC, faz-se necessário um olhar mais atento ao principal organismo governamental negociador: o Departamento de Comércio (DPC) ligado ao Ministério do Comércio e Indústria. Como ressalta Gupta, o DCP possuía, no início dos anos 1990, um mandato liberalizante. Assim, com a implantação de acordos firmados na Rodada Uruguai, além de medidas liberalizantes tomadas no início da década de 1990, os produtores indianos passaram a vivenciar a concorrência internacional de maneira substancial pela primeira vez desde a independência. A falta de contrapartida por parte dos países desenvolvidos (PDs), expressa pela contínua concessão de subsídios agrícolas, aumento das barreiras comerciais não tarifárias e ações antidumping contra exportadores indianos, fez crescer o sentimento pessimista em relação ao sistema multilateral de comércio, considerado demasiadamente enviesado em favor dos países desenvolvidos.

Com a consolidação de um sentimento anti-OMC em diversas esferas governamentais e societais da Índia, o DPC passou a ser desprestigiado, visto como um órgão que não defendia os interesses indianos. Neste contexto de falta de credibilidade, o DPC modificou a sua postura inicial liberalizadora e passou a apresentar uma postura muito mais defensiva nas negociações da OMC. Assim, em 2001, a Índia apresentava-se indisposta a negociar a Rodada de Doha da OMC. Entretanto, como demonstra Gupta, modificações institucionais no processo decisório da política comercial indiana reverteram este posicionamento excessivamente defensivo, recolocando a Índia na mesa negociadora da Rodada de Doha. Ademais, as informações e demandas emanadas dos grupos de interesse, governos estaduais e outros ministérios tornaram a posição indiana na OMC mais clara, complexa e fiel às necessidades do país.

As principais mudanças no posicionamento indiano advindo da maior abertura do processo decisório comercial restringiram-se à predominância de interesses defensivos no que tange a agricultura sob a forte influência do Ministério da Agricultura, ainda que existam alguns setores agrícolas ofensivos, e a ofensividade do setor de serviços indianos, dada a sua alta competitividade. Ademais, destaca-se o elemento contra-intuitivo de a proteção agrícola ser fruto da ação do Ministério da Agricultura e não de pressões protecionistas, assim como a vontade indiana de cooperar entre países do Sul, em virtude da percepção de assimetria e baixa vontade dos ricos em cooperarem para que os países em desenvolvimento (PEDs) atinjam resultados melhores.

O principal objetivo do terceiro capítulo é realizar um mapeamento das coalizões internacionais formadas por PEDs na OMC. O ponto de partida das autoras é o pressuposto institucionalista liberal, ou seja, o de que um elevado grau de interdependência entre os Estados conduz os mesmos a cooperarem. Esta interdependência, entretanto, não produz resultados homogêneos; pelo contrário, apresenta-se de forma assimétrica. Assim, em um cenário de profundas assimetrias de poder como o atual, os países em desenvolvimento (mais vulneráveis) são aqueles cujo interesse pelo fortalecimento das regras e instituições internacionais é ainda maior.

Isso porque há um elemento comum a todos os PEDs: a fragilidade de suas posições derivada de um baixo poder de barganha, medido pelo tamanho relativo dos mercados domésticos. Este posicionamento desprivilegiado se reflete, sobretudo, na formulação das regras da OMC, fazendo dos PEDs receptores de regras. É justamente neste contexto que emerge um forte incentivo aos PEDs formarem coalizões dentro da OMC na tentativa de reverter este cenário.

De um modo geral, a formação de coalizões entre os PEDs representa uma força conjunta com a qual é possível pensar uma agenda negociadora na OMC alternativa àquela lograda pelos PDs. Ao todo, foram constatadas 35 coalizões na OMC. Destas, quinze puderam ser classificadas como coalizões de bloco, ainda que algumas destas coalizões acomodem características temáticas. O achado mais interessante talvez resida na constatação de que apenas dois países considerados desenvolvidos (Eslovênia e Coréia do Sul) compõem uma coalizão do tipo bloco. Deste modo, verifica-se que os PDs atuam predominantemente em coalizões temáticas, muitas vezes restringidas a temáticas específicas, como a liberalização de serviços relacionados à computação, por exemplo.

Outra importante verificação empírica diz respeito à predominância de coalizões formadas por PEDs na OMC. Além disso, os menores PEDs são aqueles que mais participam de coalizões, reforçando o argumento central defendido pelas autoras do capítulo: as assimetrias de poder e as deficiências em relação ao poder de barganha conduzem os PEDs, via formação de coalizões, a tentar contornar os constrangimentos a que estão sujeitos.

Compreender as razões que conduziram Brasil e Índia a liderarem a coalizão G-20 na OMC é o objetivo central do quarto capítulo. Para tanto, os autores privilegiam a análise da ação de atores racionais em um ambiente determinado por regras e práticas de negociações comerciais. No que diz respeito ao contexto institucional da OMC, destacam-se, para o caso analisado, as regras do consenso e single-undertaking, assim como o processo de negociação de uma rodada.

Essas duas regras fazem com que qualquer membro da OMC seja capaz de bloquear as negociações, tornando a tomada de decisões complexa e de difícil alcance. Uma alternativa foi criada para minimizar as dificuldades emergidas deste método decisório: a concentração de parte substancial das negociações nas mãos de uma pequena porcentagem de membros reunidos no chamado Green Room. Assim, a principal conclusão advinda deste cenário institucional é a baixa capacidade dos países menos desenvolvidos em influir nos resultados das negociações.

Neste ambiente institucional, o jogo negociador em questão foi um acordo de liberalização agrícola. Neste jogo seqüencial, Estados Unidos da América (EUA) e Comunidade Européia (CE), ao divulgarem seu documento conjunto e contarem com o respaldo do secretariado da OMC, "jogaram primeiro", cabendo ao Brasil e Índia responderem a esta primeira ação. Dada a preferência da CE, uma ação conjunta com os EUA era a melhor opção, já que dividiria a responsabilidade com os últimos de um eventual não-acordo, como também aumentaria a possibilidade de aprovação da proposta modesta em agricultura, destravando a agenda. O que ambos os países não previram foi a emergência de uma coalizão liderada por PEDs capaz de contrapor a iniciativa dos EUA e da CE: o G-20.

O fato de a proposta EUA-CE sugerir uma reinterpretação do Mandato de Doha que levasse menos em conta as demandas do Terceiro Mundo facilitou a aproximação entre brasileiros, indianos, chineses etc. Ademais, a preocupação com a liberalização agrícola por parte do Brasil poderia se somar aos anseios indianos por tratamento especial na Rodada de Doha, minimizando a disparidade entre as preferências comerciais de ambos (ver capítulo 1). Vale ressaltar que, para a Índia, a proposta modesta não se constituía um quadro tão desvantajoso, tornando o Brasil o país mais prejudicado por uma eventual aprovação da proposta modesta. É esta necessidade que explica a iniciativa brasileira de se aproximar da Índia, assim como de adequar a sua proposta à da Índia, posicionando o G-20 de maneira ofensiva quando se tratava de liberalizar os mercados dos PDs, e defensiva quando o assunto eram os mercados dos PEDs. Deste modo, fica claro que atores racionais, com a estrutura de preferência destes países, teriam criado uma aliança como o G-20. Além disso, evidencia-se que o Brasil teve que se mover em direção à preferência da Índia e não o contrário.

No momento em que o Brasil rejeitou a proposta conjunta dos EUA e da CE e articulou, posteriormente, uma coalizão com outros países em desenvolvimento, uma questão foi prontamente levantada: tal ação foi racional ou ideológica? No quinto capítulo, por meio da utilização da teoria dos jogos, o objetivo central é responder a esta pergunta, interpretando o processo negociador de Cancun. A resposta dada pelo autor caracteriza a ação diplomática brasileira em dita negociação perfeitamente racional, rejeitando a suposição de uma ação ideológica por parte dos negociadores brasileiros.

Apesar das simplificações necessárias para a abordagem proposta pelo autor, o modelo construído a partir de um jogo repetido, mas finito (dois períodos), produz resultados que auxiliam a compreender a realidade. Nestes resultados, verificou-se que uma avaliação razoável da negociação de Cancun gerava taxas de juros tão altas que a perda do Brasil resultante de esperar mais um período não era tão significativa comparativamente. Assim, no jogo proposto, seria difícil imaginar que o Brasil lograria aprovar uma proposta que gerasse quatro vezes mais benefícios do que a proposta norte-americana. O raciocínio brasileiro de arriscar esperar mais um tempo, em vez de aceitar uma proposta norte-americana ruim aos interesses brasileiros, pode ser considerado racional com razoável segurança.

Revista Contexto Internacional - PUC-RJ



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