BRONCKART, J. P. (2006). Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de Letras
No início do século XXI, emergiram vários trabalhos tratando de questões relacionadas à linguagem e ao trabalho. Nessa perspectiva, em especial na área da Lingüística Aplicada, os estudos da atividade profissional docente passam a ocupar um lugar de destaque, o que pode ser evidenciado por publicações em periódicos (GERALDINI e MARTINS FONTES, 2004; MACHADO e ABREU-TARDELLI, 2005; MAZZILLO, 2005), anais de congresso (MACHADO e CRISTOVÃO, 2005) e coletâneas (SOUZA-E-SILVA e FAÏTA, 2002; MACHADO, 2004; FAÏTA, 2005). De maneira especial, estamos fazendo referência a textos que exploram o trabalho do professor e o papel da linguagem em constituir essa atividade profissional e suas relações sociais. Nesse sentido o livro que ora apresentamos vem justamente especular as relações entre práticas de linguagem, atividade e ação.
A obra Atividade de Linguagem, discurso e desenvolvimento humano, organizado por Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matencio, traz oito artigos publicados ao longo dos últimos 10 anos, traduzidos e organizados em um volume, que ilustram as maiores orientações do Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD) desenvolvido por Bronckart e seus colaboradores. Trata-se do primeiro livro com textos de Bronckart publicados no Brasil após sua obra Atividade de linguagem, textos e discursos de 1997, lançada em português em 1999.
O ISD, inscrito no movimento do interacionismo social, adota três princípios gerais: 1) a problemática da construção do pensamento humano consciente deve ser tratada paralelamente à construção do mundo, dos fatos sociais e obras culturais; os processos de socialização e individuação são vertentes indissociáveis do desenvolvimento humano; 2) os questionamentos das Ciências Humanas devem apoiar-se na filosofia (de Aristóteles a Marx) e preocupar-se ao mesmo tempo com questões de intervenção prática; 3) as problemáticas centrais de uma ciência do humano implicam relações de interdependência entre os aspectos psicológicos, cognitivos, sociais, culturais, lingüísticos, e também os processos evolutivos e históricos.
Para o ISD a problemática da linguagem é central ou decisiva para a ciência do humano e considera que os signos linguageiros estejam na origem da constituição do pensamento consciente. O ISD procura demonstrar que as práticas de linguagem situadas são os maiores instrumentos do desenvolvimento humano, tanto sob o ângulo do conhecimento e do saber como em relação às capacidades de agir e da identidade das pessoas. A construção das capacidades cognitivas resulta de um processo inicialmente marcado pelo sócio-cultural e pela linguagem.
Bronckart iniciou seus estudos filiando-se a diversas correntes de pensamento, entre as quais o behaviorismo de Skinner, a Gramática Gerativa de Chomsky, e as idéias de Vygotsky, Luria e Leontiev (às quais aderiu firmemente). Embora tenha depois rejeitado o behaviorismo, conservou a higiene metodológica dessa corrente, o que se reflete em seus trabalhos com os textos.
Numa segunda fase, Bronckart integrou o Centro Internacional da Epistemologia Genética, realizando estudos estritamente piagetianos. Tentou conciliar a perspectiva de desenvolvimento de Piaget com a abordagem estrutural de Chomsky em suas pesquisas, mas essas referências teóricas não se mostraram pertinentes para seus estudos. Percebeu, então, que necessitava de um quadro textual global, o que o fez entrar em contato com a obra de Bakhtin, iniciando um debate permanente com Jean-Michel Adam e seus trabalhos.
Em seguida, após 1973, Bronckart ministrou um curso de Lingüística destinado aos formadores e professores da escola Primária de Genebra e obteve um posto de professor de "Psicopedagogia das Línguas". Entre seus colaboradores estavam Daniel Bain e Bernard Schneuwly. Desta fase e de suas preocupações didáticas se originou o projeto do ISD propriamente dito. Nas fases iniciais, os trabalhos consistiam em criar e testar seqüências didáticas e elaborar paralelamente um modelo teórico capaz de sustentar e esclarecer questões práticas. Bronckart e seus colaboradores reexaminaram a abordagem de Vygotsky, a obra de Saussure, o papel da apropriação dos signos na emergência da consciência humana, e começaram a estudar os efeitos produzidos pela matriz dos gêneros textuais e dos tipos de discurso sobre o desenvolvimento humano, nas suas dimensões epistemológicas e praxiológicas.
O primeiro artigo do livro, As unidades de análise da psicologia e sua interpretação, apresenta a posição do ISD em relação à problemática do desenvolvimento humano por meio da confrontação dos aportes respectivos do interacionismo social de Vigostky e do construtivismo de Piaget. O autor entende que os princípios explicativos do humano se situam na construção do social e do semiótico, sendo que o comportamento só se explica pela construção e pela evolução das organizações sociais.
O artigo Ação, discurso e racionalização: a hipótese de desenvolvimento de Vygotsky revisitada (capítulo 2) é um reexame das propostas psicológicas de Vygotsky e de seu quadro epistemológico. Nessa análise Bronckart critica, entre outras coisas, a ausência de uma verdadeira conceitualização praxiológica (apoiando-se principalmente nas teorias de Anscombe, Habermas e Riccouer), enfatizando o papel decisivo da atividade de linguagem na construção das próprias ações e dos conhecimentos declarativos. Critica a hipótese de Vygotsky de que os desenvolvimentos da inteligência prática e da linguagem na criança se dêem de forma separada, e de que só haja uma convergência de ambos após 15/18 meses de vida. Para Bronckart, a criança é imediatamente imersa em um mundo de pré-construídos sociais que mediatizam suas relações com o meio ambiente e constroem suas primeiras imagens mentais.
O artigo A análise do signo e a gênese do pensamento consciente (capítulo 3) consiste em uma tentativa de demonstração dessa hipótese, que se articula com um reexame empírico dos dados analisados por Piaget em La formation du symbole. Bronckart apóia-se em Saussure, em sua análise da natureza do signo lingüístico, ao comentar sobre as quatro propriedades dos signos (seu caráter imotivado, radicalmente arbitrário, discreto e dinâmico) e mostra como a interiorização dessas propriedades pela criança transforma a organização psíquica que emerge do estado sensório motor.
O artigo Os gêneros textuais e os tipos de discurso como formatos das interações propiciadoras de desenvolvimento (capítulo 4) apresenta as teses centrais do ISD em relação aos estatutos da linguagem, dos gêneros textuais e dos tipos de discursos, bem como o papel desempenhado pelos últimos no processo do desenvolvimento humano. Bronckart apóia-se em diversos referenciais teóricos, tais como a filosofia marxista, as correntes da física dinâmica, as abordagens de Volishinov, de Fregue, Saussure e Wittgenstein. O modelo de arquitetura textual proposto pelo ISD coloca no centro as unidades lingüísticas, chamadas de tipos de discurso, as quais dão conta dos diferentes mundos discursivos que podem ser construídos e combinados nos textos. São essas unidades macrossintáticas de base que se aplicam aos diversos mecanismos de textualização (conexão e coesão) e de enunciação (vozes e modalização). Mas a utilização do termo discurso traz um problema, na medida em que o mesmo termo se aplica a numerosos outros quadros teóricos. O autor prefere, dessa forma, designar discurso como a atividade da língua em contexto, por oposição às dimensões do sistema da língua e aos textos concretos que são produtos dessa atividade.
O capítulo 5 - Questões em jogo e problemas da nossa análise do discurso - apresenta os argumentos que fazem o ISD adotar e a manter essa acepção do termo discurso, apesar dos problemas de compreensão que possam advir.
Os próximos três artigos são mais centrados nas questões da educação e da intervenção formativa. No capítulo 6, As condições de construção dos conhecimentos humanos, Bronckart analisa os três conceitos de desenvolvimento que exercem maior influência na educação: a tradição escolástica e sua reformulação parcial dentro do quadro das abordagens behavioristas; o modernismo, proveniente de Comenius, desenvolvido pelos promotores da Nova Escola, ou da Educação Ativa, apoiada pela psicologia do desenvolvimento de Piaget; e a abordagem sócio-cultural herdada de Vygotsky e do interacionismo social. Faz uma análise do conceito de competências e suas implicações político-ideológicas e propõe uma releitura dessa noção, introduzindo uma ênfase em sua dimensão dinâmica. Centra-se também nas abordagens relevantes da análise do trabalho e anuncia as razões que levaram o ISD a se integrar a esse movimento, apresentando as grandes linhas de pesquisa nessa perspectiva.
O capítulo 7, Porque e como analisar o trabalho do(a) professor(a), apresenta três situações de trabalho com a finalidade de: analisar as características comportamentais e de linguagem do trabalho real; as representações dessa atividade de trabalho pelas instituições e as pessoas implicadas; e os efeitos formativos e/ou de desenvolvimento potenciais dessas análises interpretativas da atividade. Utilizam-se conceitos e métodos da ergonomia, sendo apresentados, em seguida, os princípios que orientam tal pesquisa, bem como os principais conceitos utilizados para interpretar os dados coletados. São resumidos, enfim, alguns resultados obtidos, que confirmam por um lado as diferenças entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado, e as dificuldade de se conduzir uma pesquisa que revela o cotidiano dos professores.
O capítulo 8 - Entrar em acordo para agir e agir para entrar em acordo - faz uma análise histórica dos conflitos entre pesquisas de base e pesquisas aplicadas, que marcaram as Ciências Humanas e Sociais, e traz um conjunto de reflexões sobre o estatuto das Ciências da Educação e das intervenções formativas. O autor entende que é importante analisarmos as ações e os discursos produzidos no quadro das intervenções, por um lado, e por outro tomarmos "consciência das propriedades, da problemática e dos efeitos dessas produções acionais e textuais" (p.255). Essa análise e tomada de consciência em si, embora importantes, não constituem um objetivo final de formação. É preciso ir além, se quisermos fazer frente à economia capitalista globalizada, repensando o futuro à luz de outros critérios e valores.
A coletânea do autor tem como título Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano, mas, no entanto, Bronckart opta por utilizar a expressão atividades de linguagem (ao invés de discurso) para designar "a operacionalização da linguagem por indivíduos em situações concretas" (p. 140). O termo discurso aparece no texto para referir-se a atividades de linguagem, enquanto que tipos de discurso estão relacionados a modalidades do agir da linguagem, que são expressas por meio de quatro formas lingüísticas relativamente estáveis: discurso interativo, teórico, relato interativo e narração. Os capítulos deste livro não contemplam as relações de poder no discurso e não discutem seu caráter ideológico, embora, conforme o autor, o objeto da educação seja constituído por "intervenções formativas deliberadas" (p.255), o que, no nosso entender, envolve essas questões. Consideramos que o agir humano (tema central do livro) seja permeado pela ideologia e por relações de poder, que influem inclusive nas escolhas dos gêneros textuais a serem utilizados nas interações sociais. O autor, no entanto, não deixa claro o que entende por ideologia e sua relação com o agir.
O livro cumpre o objetivo de apresentar um panorama dos princípios que subjazem ao interacionismo sociodiscursivo detalhando a especificidade da linguagem ser central nessa ciência do humano. Como explicitado na introdução, "o ISD visa demonstrar que as práticas linguageiras situadas (ou os textos-discursos) são os instrumentos principais do desenvolvimento humano, tanto em relação aos conhecimentos e aos saberes quanto em relação às capacidades do agir e da identidade" (p.10). A organização da obra procura discorrer sobre os construtos necessários para a compreensão dessas propostas, pressupondo leituras prévias em áreas como a lingüística, a filosofia, a psicologia da linguagem. Assim, acreditamos que o livro se destina àqueles realizando estudos e/ou pesquisas dentro de uma perspectiva sócio-histórica com vistas a análises lingüístico-discursivas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBRONCKART, J. P. (2006). Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de Letras.
FAÏTA, D. (2005). Análise dialógica da atividade profissional. Rio de Janeiro: Express Editora.
GERALDINI, A. F. S. ; FONTES, M. C. M. (2002). Ações docentes em meio digital: uma proposta sócio-interacionista. Calidoscópio, São Leopoldo, v. 02, p. 97-105.
MACHADO, A. R. (org.) (2004). O Ensino como Trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina: EDUEL.
MACHADO, A. R.; ABREU-TARDELLI, L. S. (2005). Textos prescritivos da educação presencial e a distância: fonte primeira do estresse do professor? Signum, Londrina, v. 8, n. 1, p. 11-24.
MACHADO, A. R.; CRISTOVÃO, V. L. L. ; . Representações sobre o Professor e Seu Trabalho em Proposta Institucional Brasileira para a Formação Docente. In: Congresso Internacional Educação e Trabalho - Representações Sociais, Competências e Trajectórias Profissionais, 2005, Aveiro. Resumos das Comunicações, 2005. p. 17-17.
MAZZILLO, T. (2005). Professores à beira de um ataque de nervos: o dilema do trabalho real e o stress ocupacional. Signum, Londrina, v. 1, n. 8, p. 25-36.
SOUSA-E-SILVA, M. C. P. de; FAÏTA, D. (orgs.) (2002). Linguagem e Trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo: Editora Cortez.
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