Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron
Departamento de História-FFLCH/USP
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2000, 264 p.
O livro de José Eisenberg é uma versão traduzida e revisada da sua tese de doutoramento em Ciência política, defendida na City University of New York em 1998. Eisenberg tornou-se em seguida professor desta disciplina na Universidade Federal de Minas Gerais, antes de transferir-se para o IUPERJ, onde tem-se dedicado ao estudo do pensamento de Jürgen Habermas.
Foi sob a inspiração deste autor que Eisenberg sustentou uma tese renovadora sobre a influência das missões jesuíticas brasileiras no pensamento político europeu dos séculos XVI e XVII. O postulado habermasiano que ele tomou como hipótese de trabalho concerne à idéia de que, para escrever a história da teoria política, é preciso atentar às chamadas "práticas de justificação". Segundo Eisenberg, "mudanças conceituais ocorrem freqüentemente no contexto de práticas de justificação, ou seja, em um nível de sistematização menor e anterior ao de tratados doutrinários" (p. 168). Seu trabalho tem como referência ? e como objeto de crítica ? as obras de Quentin Skinner e John Pocock, que, conforme observa, tendem a analisar exclusivamente os grandes tratados de teoria política escritos na Europa. Para Eisenberg, "a história das linguagens da teoria política moderna, encadeada na sistematização doutrinária daqueles autores que vieram a constituir o cânone do pensamento político, não é capaz de explicar, sozinha, como mudanças conceituais ocorrem e porque determinadas idéias adquirem proeminência" (p. 16). Nesse sentido ele endossa as restrições feitas aos trabalhos de Pocock e Skinner, que apontam os limites para a compreensão do surgimento de idéias sem seus contextos históricos. Para José Eisenberg, aqueles dois autores não percebem, por exemplo, que os escritos dos missionários jesuítas em atividade na América portuguesa antecipam os paradigmas fundamentais do pensamento político europeu dos séculos XVI e XVII; que as idéias de Manuel da Nóbrega (1517-1570) antecipam as de Juan de Mariana (1535-1624), assim como as idéias de Quirício Caxa (1538-1599) antecipam as de Luis de Molina (1535-1600), e que portanto Molina e Mariana na realidade apenas reescreviam " argumentos que já circulavam na Companhia de Jesus" (p. 167).
A tese sustentada por José Eisenberg é a de que "as missões jesuíticas do Novo Mundo formam o contexto histórico e intelectual do desenvolvimento do pensamento político-jesuítico do início da era moderna", na medida em que "uma primeira geração de missionários no Brasil buscava definir novas estratégias de justificação que lhes permitissem adaptar e alterar a doutrina religiosa na qual haviam sido educados para os fins práticos de seu empreendimento no Novo Mundo" (p. 14). Estas "práticas de justificação" elaboradas nas terras de missão teriam influenciado teólogos europeus como Juan de Mariana e Luis de Molina, os quais, por sua vez, anteciparam tanto Thomas Hobbes, com sua teoria da legitimação da autoridade política pelo consentimento gerado pelo medo, como Hugo Grotius, com a formalização do conceito de direito subjetivo.
Eisenberg argumenta, de maneira bastante pertinente, que essas modificações conceituais são tributárias, em última instância, do modus procedendi da Companhia de Jesus, "uma dialética entre obediência e prudência resultante dos elementos voluntarísticos da doutrina espiritual de Inácio de Loyola" (p. 19). Se a obediência era um dos três votos que as ordens religiosas exigiam dos noviços, sua conjugação com a prudência constitui uma especificidade da ordem dos inacianos. Por um lado, a prudência relaciona-se com a mobilidade e a autonomia decorrentes do voto especial de obediência direta ao papa feito pelos jesuítas, que os colocava fora da jurisdição das autoridades religiosas e seculares locais. Por outro lado, os futuros missionários eram estimulados ao exercício da razão prática (moral) nos cursos de estudos de casos de consciência instituídos nos colégios da Companhia1. Na prática, o detalhamento das regras escritas da ordem era então conjugado à prudência do missionário formado nos colégios. Ou seja, em função do contexto missionário, os inacianos procediam eventualmente a uma adaptação das normas escritas da ordem, o que era tolerado pelos seus superiores hierárquicos, se julgassem que tal adaptação não era totalmente contrária ao espírito das Constituições.
Os missionários deveriam justificar-se, portanto, na correspondência interna da ordem (as chamadas hijuelas, por oposição às cartas edificantes, destinadas a um público mais amplo). Isso implicou uma farta troca de correspondência entre o centro (Roma e Portugal) e a periferia (as terras de missão), e essas cartas tornaram-se o principal instrumento para a organização e o controle das atividades da ordem ? razão pela qual elas foram copiadas e arquivadas na Cúria Generalícia desde a sua fundação? assim como todo documento administrativo ou legal emitido pelas autoridades seculares, o que explica a enorme riqueza dos arquivos da Companhia de Jesus, comparados aos arquivos das demais ordens religiosas. Nessa correspondência, em que os missionários demonstravam sua capacidade de conjugar obediência e prudência, Eisenberg identificou as referidas "práticas" ou "estratégias de justificação": "a prestação de contas não correspondia estritamente à eficiência institucional, mas sim à demonstração do uso da prudência e da obediência nas práticas relatadas através das missivas" (p. 48).
Nesse sentido Eisenberg utiliza a idéia de "encontros do Novo Mundo", surgida nos últimos anos como opção a "descoberta" e "conquista". De fato, a pregação na língua tupi, o conhecimento da cultura nativa, as práticas curativas alternativas às dos pajés e a tolerância nos ritos sacramentais, todas essas iniciativas foram tomadas de maneira mais ou menos improvisada pelos inacianos a fim de reverter o que se anunciava como um fracasso de sua missão. Diante da multiplicação das interações culturais e das conseqüentes adaptações nas práticas evangelizadoras (que de resto se mostraram ainda pouco efetivas, do ponto de vista da conversão dos indígenas), o então Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, padre Manuel da Nóbrega, avaliou, no final da década de 1550, a necessidade de reformar a missão. Ele escreveu então diversos textos que justificavam suas decisões e as novas práticas que deveriam ser instituídas. Nos dois principais escritos resultantes dessa decisão de reforma da missão, o Diálogo sobre a conversão do gentio (1556-1557) e o chamado Plano civilizador (uma carta escrita em maio de 1558), Nóbrega sintetizou as suas justificativas de ordem teológica e política: contra as concessões feitas anteriormente no campo doutrinário, apoiadas em práticas sincréticas e heterodoxas, Nóbrega defendia a instrumentalização do "medo servil" como forma de subjugar os índios e submetê-los dentro de um espaço controlado pelos missionários, os aldeamentos jesuíticos. Segundo o argumento apresentado por Nóbrega, nos aldeamentos jesuíticos seria possível desarticular a cultura e a estrutura de autoridade das sociedades Tupi, preparando o índio à conversão e permitindo a reintrodução das práticas evangelizadoras tradicionais que os missionários haviam aos poucos abandonado, quando atuavam nas aldeias indígenas.
Em outro texto fundamental, as chamadas Respostas ao padre Quirício Caxa, Nóbrega criticou a concepção que seu colega expusera sobre o direito subjetivo. Quirício Caxa, que aparece no catálogo dos missionários da Bahia de 1566 como "prefeito dos estudos [do colégio da Bahia] e mestre de casos de consciência", definia a liberdade como uma propriedade que, como tal, poderia ser disposta de acordo com a vontade de seu proprietário. Segundo José Eisenberg, "ao amalgamar os conceitos de libertas e dominium visando a justificação da escravidão voluntária, os jesuítas se distanciaram do conceito de liberdade como direito objetivo inalienável (ius), rompendo, talvez pela primeira vez, com a então dominante interpretação dominicana do tomismo" (p. 146).
Após a instituição dos aldeamentos jesuíticos, tratava-se então, na realidade, de definir até que ponto estes aldeamentos deveriam se assemelhar à encomienda espanhola. Este aspecto fundamental do debate entre Nóbrega e Caxa foi pouco trabalhado, contudo, por José Eisenberg. De fato, ele parece estar mais preocupado em identificar a anterioridade de certas idéias elaboradas na terra de missão brasileira com relação à Europa, do que em entender o sentido que os jesuítas pretendem imprimir à sociedade colonial então em formação, e particularmente o estatuto que o indígena deveria obter nesta sociedade (escravo, cidadão ou cidadão tutelado). Ora, esta discussão, cujos termos Nóbrega pretendeu definir particularmente nos textos citados, revela o fundamento de um projeto político da Companhia de Jesus para a América portuguesa que se pretendia hegemônico. Nóbrega defendeu-o tenazmente tanto diante das autoridades administrativas, de quem necessitava apoio inclusive militar para implementá-lo, quanto diante das oposições que logo se cristalizaram dentro da própria Companhia de Jesus, em Roma, em Portugal, mas também no Brasil, onde enfrentou a referida resistência de Quirício Caxa, além de Luís da Grã, que o sucedeu no posto de Provincial, entre outros.
Se Eisenberg não contempla este aspecto da questão no seu livro, o problema não deixa contudo de insinuar-se constantemente no cerne mesmo da sua tese, pois ele concerne o contexto histórico que consubstancia afinal as chamadas "justificações" elaboradas nas terras de missão que teriam influenciado o pensamento político dos teólogos-juristas europeus, e que resultou na transição da hegemonia teológicopolítica dominicana para a jesuítica, durante o século XVI. A questão não é de menor relevância, pois, conforme a formulação da sua hipótese de trabalho: "a relação entre teorias e práticas de justificação é uma relação historicamente determinada", isto é "foi no processo de aplicar máximas teológicas à interpretação de problemas práticos que os irmãos acabaram por produzir conceitos políticos que diferiam da interpretação dominicana vigente" (p. 169 e 168, respectivamente).
O problema torna-se mais claro quando José Eisenberg discute a questão da escravidão, e particularmente da escravidão voluntária. Ele afirma que "devido à premência das questões concretas, as sutilezas e dificuldades dos dilemas escolásticos tomistas que envolviam a questão da escravidão voluntária foram deixados de lado" (p. 156). Ora, a questão da escravidão, voluntária ou não, jamais foi deixada de lado pelos jesuítas, e as justificações dos missionários sobre as suas próprias práticas concernentes a esta questão exprimiram-se precisamente através dos termos definidos pelo pensamento escolástico tomista. Assim, deve-se ressaltar em primeiro lugar que não foi tanto o enfraquecimento do fervor missionário, e sim um crescente pragmatismo no sentido do autofinanciamento da missão que constituiu o principal ponto de inflexão da política missionária jesuítica no Brasil. A insuficiência das esmolas reais, que deveriam garantir a subsistência dos missionários nas terras de missão, induziu-os à prática de diversos negócios no Brasil, incluindo o plantio da cana de açúcar e a produção de farinha de mandioca e outros gêneros alimentícios consumidos no Brasil, utilizando mão de obra escrava e não-escrava. É nesse sentido que Manuel da Nóbrega argumenta em suas cartas. Em segundo lugar, a responsabilidade pela fiscalização da aplicação da política indigenista promulgada pela Coroa para a América portuguesa foi insistentemente reivindicada pelos próprios missionários jesuítas (e concedida afinal por Filipe II com a lei de 27 de julho de 1596), o que acabou conformando tanto a sua prática de terreno como a sua relação com a hierarquia romana e com a sociedade colonial. Uma prova da importância local destas duas questões concernentes à escravidão indígena reside no fato de que cada Visitador enviado por Roma (estatutariamente definido como autoridade máxima na Província jesuítica) reviu sistematicamente suas posições, contra a letra das instruções promulgadas pela Cúria generalícia.
Na definição do estatuto social, político e econômico do índio reside portanto o cerne do viés político desta comunicação que se estabeleceu entre as terras de missão e os centros universitários e institucionais europeus. O contexto histórico em que se moveu a Companhia de Jesus na América portuguesa levou finalmente os missionários, e Nóbrega em particular, a advogar a necessidade de tutela dos índios, circunscrevendo a escravidão aos casos tradicionalmente previstos pela lei civil (guerra justa, comutação da pena de morte, necessidade extrema, condição do ventre materno). Por trás da questão da instituição de um regime tutelar para os índios nos aldeamentos controlados pelos jesuítas (este é o sentido da reforma da missão advogada por Nóbrega em 1558) desenhava-se o projeto de tutela de toda a sociedade colonial, a partir do poder indireto (potestas indirecta) que a Igreja poderia exercer legitimamente em caso de degenerescência da ordem moral que impedisse a salvação dos governados. Nóbrega, no Brasil, e José de Acosta, no Peru, são os principais defensores deste programa político. No caso de Nóbrega, para além da licenciosidade dos costumes de uns e de outros, moradores portugueses e indígenas, ele avançava ainda como argumento para o exercício do poder indireto pela Companhia de Jesus os problemas derivados das formas ilegais de redução à escravidão dos ameríndios. Este é o sentido da implantação dos aldeamentos jesuíticos que deveriam ter a "administração" exclusiva dos índios "descidos" do sertão e, complementarmente, da fiscalização da aplicação da política indigenista promulgada pela Coroa para a América portuguesa.
A teoria do poder indireto está claramente formulada por Francisco de Vitoria desde 1539. Nóbrega, que estudou nas universidades de Salamanca e Coimbra antes de entrar para a Companhia de Jesus, em 1544, certamente não era estranho às idéias de Vitoria. Reformulou-as, adaptando-as ao contexto da América portuguesa, e apresentou-as aos seus superiores e aos teólogos que ensinavam nas universidades européias, acabadas ou sob a forma de consultas (tal como fizera Quirício Caxa, que reformulara-as diferentemente, no entanto). Nestes caminhos cruzados, tais idéias sofreram transformações contínuas. Algumas foram desaprovadas ou esquecidas; outras fizeram o seu caminho, institucional, teórico ou prático, e sobreviveram. Identificar estes caminhos exige do historiador seguir o fio dos argumentos através dos documentos, por mais que encontre nós e outros embaraços. O trabalho de José Eisenberg, ao estudar a história das idéias políticas do ponto de vista das trocas estabelecidas entre a América portuguesa e a Europa, dá-nos algumas pistas bastante seguras para começar a desembolar esta meada.
O estudo de Eisenberg inscreve-se na perspectiva do "desenclausuramento" recente da história das religiões, que procura retirá-la do domínio reservado da sua disciplina para integrá-la às demais ciências sociais, permitindo novas aberturas e abordagens críticas. Essa perspectiva foi comentada pelo historiador Pierre-Antoine Fabre em número especial da Revue de Synthèse (1999/2-3) dedicado à questão, e amplamente retomada pouco depois na revista dos Annales (1999/4). No caso da historiografia brasileira relativa ao período colonial, o "desenclausuramento" que constatamos no trabalho de Eisenberg liberta-a enfim das tradicionais e persistentes limitações impostas por um partidarismo típico do século XIX (apologia vs. antijesuitismo), que perpetuou-se em diversos historiadores de orientação pretensamente marxista, no século passado, e de maneira mais acentuada na leva mais recente de historiadores obcecados pela idéia de fazer reviver a velha oposição oitocentista "metrópole versus colônia". A hegemonia de uma memória histórica jesuítica que se estende de maneira quase uniforme de Simão de Vasconcelos (1662) a Antonio Serafim Leite (1950) e seus herdeiros talvez encontre aqui, finalmente, um ponto de inflexão.
1 A casuística era estudada durante dois anos no curso superior de teologia, que tinha uma duração de quatro anos.
Revista de História - USP
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