Marchinhas e canções
09/Mai/98
Walnice Nogueira Galvão
A CANÇÃO NO TEMPO - 85 ANOS DE MÚSICAS BRASILEIRAS /LIVRO/; MÚSICA POPULAR: UM TEMA EM DEBATE /LIVRO/; AS ORIGENS DA CANÇÃO URBANA /LIVRO/ANTOLOGIA MUSICAL POPULAR BRASILEIRA - AS MARCHINHAS DE CARNAVAL
do grau de maturidade atingido pelos trabalhos sobre música popular entre nós dão testemunho "A Canção no Tempo", de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, e "As Origens da Canção Urbana", de José Ramos Tinhorão. Os três autores são tarimbados especialistas e já deram mostras de sua competência em outras instâncias.
Comecemos pelo primeiro livro. Planejado em três volumes, dos quais só o primeiro sai agora, tem concepção ambiciosa e realização impecável. Finca pé no início do século e vem até o umbral da bossa nova. Os recortes são irregulares, cada capítulo se detendo nos limites cronológicos das sucessivas fases até 1929, quando a produção se acumula e cada ano passa a ser examinado separadamente.
Os capítulos obedecem ao seguinte formato: período, indicado no título; seleção das canções mais importantes, cada uma com seu comentário separado; lista de suas melhores gravações; lista de outros sucessos nacionais; lista de sucessos estrangeiros no período, o que é uma ótima idéia. Fecha o capítulo uma cronologia, trazendo não só o rol das datas de nascimento ou morte dos artistas, mas ainda efemérides relevantes, como por exemplo a implantação de avanços tecnológicos ou descobertas correlacionadas, no país e no exterior; acrescentam-se balizas políticas. Um índice final relaciona os títulos de todas as canções mencionadas, facilitando a consulta.
Os comentários são sucintos e de gosto seguro. Nem sectários nem dogmáticos, esboçam compreensivamente as principais linhas de desenvolvimento da canção brasileira. Por outro lado, exercitam o senso crítico, não se entregando indiscriminadamente ao elogio, o que costuma resultar em indiferenciação.
Cabe ao leitor o direito de desconfiar de que este tenha sido o volume de execução mais fácil, pois ocupa sozinho o maior período, aproximadamente dois terços do total. O que seria de se esperar, estando melhor estudado o mais remoto e por isso revelando-se menos refratário a um propósito organizatório. Basta lembrar a abundância de excelentes monografias surgidas nesta década sobre artistas de primeira linha, que vão de Noel Rosa a Ary Barroso, passando por Carmen Miranda, pela turma da bossa nova e pelo clube da esquina.
Mas seria pena se o projeto, ainda inconcluso, estacasse em 1985, como prometido. O mais difícil de pensar é o quadro de intensa diversificação que ocorreu desde aquele ano e que bem mereceria um quarto volume. O amador musical se sente aturdido pelo excesso de desinformação, quase sempre marqueteira, e fica à míngua de uma categorização, bem como do estabelecimento de parâmetros.
Quanto ao conteúdo, esforçando-se, o leitor chega a formular algumas dúvidas. Por que, entre as principais canções do ano de 1947, seleciona-se exatamente a marchinha de carnaval "Pirata da Perna de Pau", de João de Barro? Saem no ano "Anda Luzia", do mesmo autor; ou os choros "Ingênuo" e "Incêndio", ambos de Pixinguinha e Benedito Lacerda; ou "Pela Décima Vez", composto por Noel Rosa em 1935, mas sucesso nesse ano; ou o Lupicínio Rodrigues do ano, "Felicidade"; ou "Lá Vem a Baiana", de Dorival Caymmi; ou os dois Luiz Gonzaga da mesma safra, "Dezessete e Setecentos" e "Vou pra Roça"; ou o samba-canção "Se Queres Saber", de Peterpan; ou mesmo uma raridade, como a graciosa rancheira "Sá Mariquinha", de Luiz Assunção e Evenor Pontes. Não parece justo.
É verdade que primeiro fere os olhos, ou melhor, os ouvidos, o "embarras de richesses". Num mesmo ano, com exceção da rancheira, obras dos mais representativos autores: até de Noel Rosa, já morto há tempos. Estando a marchinha então no auge e havendo outra canção de João de Barro na parada, infere-se que esta deve ter sido escolhida para acentuar a continuidade do gênero; mas a explicação resta insatisfatória.
Esta observação serve só para implicar com alguma coisa, já que de modo geral o trabalho é mais do que correto. E nem o leitor dominaria a perícia de saber que essas canções são de 1947, ou 1946, ou 1948, não fosse a lista de "Outros Sucessos" generosamente anexada a cada capítulo.
O segundo lançamento, o de José Ramos Tinhorão, na realidade são dois. E o autor constitui um ponto de referência incontornável na área, sendo seus numerosos livros obrigatórios em qualquer bibliografia. Por coincidência, saem agora simultaneamente seu trabalho mais erudito, "As Origens da Canção Urbana", e uma reedição de "Música Popular: Um Tema em Debate", de 30 anos atrás. Este último, juntamente com "O Samba agora Vai... A Farsa da Música Brasileira no Exterior", encarna uma feroz análise política da bossa nova, cavalo de batalha do autor, como é sabido.
É curioso que o novo livro e a reedição pareçam escritos por dois autores diferentes. Enquanto o novo é circunspecto, levando a pesquisa a sério e enveredando por insuspeitados interesses sofisticadíssimos (Arcipreste de Hita, o "Cancioneiro" de Garcia de Resende etc.), o antigo afoitamente se lança à interpretação, utilizando fórmulas que mesmo na ocasião já eram rançosas, mas de boa briga. O leitor leva um susto e indaga: será que é o mesmo Tinhorão? Será que ele ainda sustenta o que escreveu 30 anos atrás? Que a bossa nova á uma bobagem, é mistificação, é música ruim etc.? Deve sustentar, porque se trata de uma 3ª edição revista e ampliada. Seus alvos são, como se sabe, a classe média e os americanos. A classe média, por ser o berço da bossa nova, quando ela é por natureza acometida do desvio de "idealismo" e incapaz de criatividade, o que é apanágio do povo. Os americanos, ora os americanos... Mas, no caso, por causa da deformação que o jazz infligiu ao samba (menos mal, diríamos nós), conúbio duvidoso de que nasceu a bossa nova, essa bastarda.
Dá para entender um pouco e até simpatizar com os cuidados que subjazem à atitude de Tinhorão. O que o atemoriza, e não só a ele, mas também a outros que, como ele, são respeitados pesquisadores e aficionados da música popular, é a ameaça de descaracterização que a todo momento pesa sobre ela, sobretudo por via da comercialização. Como resistir à sedução dos tremendos investimentos que ela atrai, contanto que se vergue a certas exigências? Outrora, os sambistas vendiam suas criações por quaisquer mil-réis, e assim foram esbulhados para sempre de seu fino produto, não lhes cabendo nem os lucros nem a glória. Hoje isso não mais ocorre, mas em compensação o volume de negócios ultrapassa anualmente o bilhão de dólares. Tendo o Brasil se tornado nesse ínterim o sexto mercado musical do mundo, pode-se valorizar melhor em quanto importa travar uma batalha perdida depois da outra, no afã de preservar a autenticidade ou, como se diz, a fidelidade às raízes.
Já o livro novo efetua uma investigação erudita, em materiais sobretudo portugueses, procurando perquirir onde começa essa maneira tão moderna de cantar solando e se acompanhando a instrumento de cordas. O autor avança a hipótese de que essa maneira seria muito mais antiga do que se costuma pensar e solidamente implantada na tradição colonial brasileira e lusitana. Neste interessantíssimo livro, é de se contemplar um Tinhorão composto e contido.
Vale registro ainda a "Antologia Musical Popular Brasileira - As Marchinhas de Carnaval", organizada por Roberto Lapiccirella. Na forma de um grande caderno espiral, cada par de páginas traz uma canção com letra e melodia cifradas, com diagramação de acordes para violão, cavaquinho e piano, sendo ideal para quem quer cantar e executar em solo, como a figura delineada pela pesquisa de Tinhorão. Apresenta uma introdução historiando o gênero, informações sobre as principais gravações, um comentário, a caricatura do autor e, no final, minibiografias de todos eles.Trata-se de uma coletânea bastante completa, incluindo, afora as marchinhas do título, marchas-rancho e frevos. Só vai até o ano de 1982, sendo que as duas últimas marchinhas são... frevos. Mas o defeito não é do livro e sim da história, pois a marchinha, como se sabe, desapareceu: as antigas é que são cantadas todos os anos no carnaval. Anuncia-se outro volume, com sambas carnavalescos. Produção visivelmente doméstica e despretensiosa, poderia alçar-se a outro patamar se caprichasse mais no suporte e se o comentário a cada canção fosse um pouco mais rigoroso. Nem se discute sua inegável utilidade.
Em resumo, o panorama destes estudos não poderia ser mais rico em sua variedade. Ganhamos uma nova publicação de cunho enciclopédico, esplendidamente realizada; um Tinhorão inusitado, ao lado da reedição de um outro tão clássico quanto polêmico; e um álbum que nem por ser modesto deixa de bem atender às necessidades dos amadores do gênero. É o que se descortina no momento e só se pode almejar que assim persista.
Walnice Nogueira Galvão é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora, entre outros, de "Desconversa" (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
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