A utopia brasileira e os movimentos negros
Ciências Humanas e Sociais

A utopia brasileira e os movimentos negros



Antonio Risério- A utopia brasileira e os movimentos negros

Antonio Paim *

São Paulo, Editora 34, 2007.

Entre nós, a discussão substantiva de certos temas deixa muito a desejar. Atribuo a circunstância a certa acomodação com o patrulhamento ideológico, vigente em áreas da universidade e instâncias do governo, notadamente da educação. Essa acomodação pode ter resultado de duas coisas: reconhecimento da inutilidade do gesto ou graças à "cortina de ferro" que se tem conseguido estabelecer em torno daquilo que incomoda.

Não parece muito difícil verificar que o patrulhamento hoje é igual ou maior do que o que existia em 1978, há 30 anos, portanto, quando a censura a um texto de Miguel Reale, na PUC do Rio de Janeiro, provocou grande celeuma, refletida no título do livro que editei, reunindo artigos dos dois lados - Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária: um Debate Memorável (Artenova, 1979). Desapareceu mesmo foi a discussão pública.

Chamo a atenção para esse aspecto com a intenção de evitar que se construa uma cortina de silêncio em torno das teses apresentadas por Antonio Risério em A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros (Editora 34, 2007). Acham-se extremamente bem documentadas e são as seguintes: os atuais movimentos negros renegaram a tradição da abordagem do assunto, que, no Brasil, estava centrada na questão da cor. O máximo que se pretendeu nessa matéria consistiu em recomendar o branqueamento, que não deixava de ser uma capitulação diante da mistura, da mescla, da miscigenação. Mais importante que essa advertência é a comprovação de que se trata simplesmente de macaquear modelo alienígena.

Transcrevo: "Não devemos desconhecer a realidade em que nos movemos. Não devemos ceder à tentação das fantasias fáceis, dos truques ideológicos, dos artifícios jurídicos, dos maniqueísmos simplificadores. Não devemos nos contentar com a transposição mecânica, para a realidade sociorracial brasileira, de discurso político-acadêmico em vigor nos EUA, cujas história, formação e situação são radicalmente dessemelhantes da nossa experiência como povo e nação. Pelo contrário: temos de recusar o imperialismo cultural norte-americano, que pretende universalizar os seus modelos e os seus particularismos. E temos de partir de nós mesmos. É por isso que insisto que não temos nenhuma forte razão para substituir o rico espectro cromático brasileiro pelo rígido padrão racial norte-americano - ainda mais que, nos EUA, cresce a mobilização em favor do reconhecimento social da existência de mestiços, com um número cada vez maior de pessoas reivindicando a inclusão da categoria mixed-race no censo (e no senso) da nação. De outra parte, acho que não devemos perder muito tempo fazendo essas comparações.

Esclareçamos as coisas básicas e, depois, o melhor é deixar os EUA de lado - e nos concentrarmos em nossos muitos e urgentes problemas. Mas o certo é que ninguém vai entender o Brasil se não encarar, em toda a sua abrangência e complexidade, os fenômenos fundamentais da mestiçagem e do sincretismo" (edição citada, pág. 411).

Risério procurou reconstituir toda a discussão em torno da escravatura, inclusive a noção (perdida) de que a sua aceitação não se limitava à "classe dominante", sendo inclusive prática existente e reconhecida entre os próprios escravos. Essa recuperação se estende ao movimento abolicionista. A contribuição dos africanos à nossa civilização se acha suficientemente valorizada, sem embargo da ênfase na falta de sentido de deixar de proclamar que a descendência reconhece (e proclama) ser brasileira.

Detém-se também no que denominou "movimentos negros hoje", buscando recuperar antecedentes imediatos esquecidos. A transição da tradicional classificação da população, como sendo de cor, para denominá-la "negra", se encontra fartamente documentada e discutida. Denuncia com propriedade a falácia de seus defensores ao afirmar que estariam passando do "biológico para o político" como "artifício ideológico para neutralizar ou encobrir o fato genético, a mistura de genes". A conclusão é a seguinte: "O racialismo neonegro, que vinha há tempo conseguindo algum espaço no governo federal, deixou o entrincheiramento burocrático e se instalou abertamente na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, desde a posse de Lula."

A substituição do nosso comportamento tradicional pelo modelo norte-americano introduz em nosso meio postura nitidamente racista. Não se trata, como adverte Risério, de negar a existência de preconceito entre nós. Mas de destacar que corresponde a preconceito de cor, condenável enquanto convicção individual. À sociedade compete impedir que se transforme em discriminação, que só poderia resultar de uma ação coletiva, o que, aliás, nunca houve no País. Não se tem notícia da existência de algo parecido com a norte-americana Ku Klux Klan.

O que me parece mais grave no racismo de tais movimentos consiste em que as políticas que têm conseguido obter correspondem a equívoco funesto. A médio e longo prazos, trarão prejuízos definitivos tanto a instituições como a indivíduos. É óbvio que a obtenção de títulos acadêmicos, mediante ingresso na universidade por meio de cotas, disseminará indevidamente a pecha de incompetente a pessoas que, sendo bem dotadas, poderiam alcançá-los sem benesses. Quanto ao acesso à universidade dos que, por dificuldades econômicas, não tiveram condições de se preparar de forma a enfrentar a competição, a política adequada consiste em proporcionar-lhes bolsas que lhes permitam ingressar pela porta da frente.

* Antonio Risério

Antonio Risério é conhecido ensaísta e estudioso da cultura brasileira, sendo autor de numerosos ensaios e de livros bem sucedidos. Entre estes, destacam-se Carnaval Ijexá, História da Cidade da Bahia e A Banda do Companheiro Mágico. Consagrado como poeta, tem usado esse dom em parceria com conceituados músicos baianos, a exemplo de Gilberto Gil. Foi assessor especial do Ministério da Cultura no primeiro governo petista.

Antonio Paim
Concluiu sua formação acadêmica na antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ, iniciando carreira acadêmica na década de sessenta, na então denominada Faculdade Nacional de Filosofia, tendo pertencido igualmente a outras universidades. Aposentou-se em 1989, como professor titular e livre docente. Desde então, integra a assessoria do Instituto Tancredo Neves, que passou a denominar-se Fundação Liberdade e Cidadania. É autor de diversas obras relacionadas à filosofia geral, à filosofia brasileira e à filosofia política.
Revista Liberdade e Cidadania



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