«A Gafanha, meus caros senhores, não é senão esta boa terra de mesquinharias e de toleimas, a fingir de nação da Europa e que nem ao menos por decoro anda de tanga. A Gafanha é a «piolheira», onde só é gente o sr. Burnay.»(...) «terra de cegos, onde não havendo ao menos quem tenha um olho para ser rei, por esse facto se pensa em fazer a republica.»
Campos Lima, in Editorial do nº 1 de A Gafanha, periódico anarquista de 1909A Gafanha foi um periódico anarquista editado por Campos Lima em 1909, cujos dois primeiros números foram digitalizados pela Hemeroteca Digital de Lisboa, e que estão agora acessíveis na internet para consulta, acompanhados por uma ficha histórica assinada por Rita Pereira que abaixo transcrevemos com a devida vénia.A Gafanha nº 1 - ver AQUIA Gafanha nº 2 - ver AQUIA Gafanha – Ficha histórica por Rita Pereira
(texto retirado do site da Hemeroteca Digital de Lisboa)
A GAFANHA
Terá surpreendido Lisboa num dia incerto do ano de 1909.
Provavelmente em Março, mas nada na publicação o assegura. Também não é fácil descortinar o ritmo de edição que prosseguiu (1). Mas para João Campos Lima (2), o dinamizador e a “alma” deste periódico de orientação libertária, essas não eram questões relevantes. O seu propósito era sim divulgar os princípios doutrinários que perfilhava, ainda que os soubesse de improvável, senão mesmo impossível, aplicação no presente e até num futuro próximo.
De facto, Campos Lima parece consciente de que o caminho a percorrer até à sociedade livre e igualitária que idealiza será longo, na medida em que pressupunha uma «transformação psycologica» geral, sobretudo do povo trabalhador. Mas isso não o desalenta. Quanto muito explica a ironia, por vezes sombreada de amargor, que dá cor à publicação. A começar no título, que se vestiu com um vocábulo que evoca os locais ermos para onde eram enviados os que padeciam de uma enfermidade de natureza epidémica, como a lepra ou a sarna, designadas “gafa”. Campos Lima justifica assim a sua escolha: «A Gafanha, meus caros senhores, não é senão esta boa terra de mesquinharias e de toleimas, a fingir de nação da Europa e que nem ao menos por decoro anda de tanga. A Gafanha é a «piolheira», onde só é gente o sr. Burnay.» E é muito mais, mormente uma «terra de cegos, onde não havendo ao menos quem tenha um olho para ser rei, por esse facto se pensa em fazer a republica.» (3) Por aqui se percebe o seu distanciamento em relação aos dois regimes políticos: Monarquia ou República – pouco diferença lhes reconhecia, já que resultariam, inevitavelmente, em sociedades organizadas em função da propriedade e, consequentemente, não solidárias e não livres.
Esta perspectiva está presente na publicação desde os primeiros números e, provavelmente, manteve-se até ao seu terminus. Mas não o podemos garantir taxativamente, porque desconhecemos quando isso se verificou. Na investigação realizada, encontrámos apenas 8 números4, todos publicados em 1909. A este propósito importa sublinhar a raridade deste tipo de periódico, facto que encontra explicação quer na sua reduzida tiragem, quer na feroz perseguição a que foram sujeitos. Recorde-se a lei de 13 de Fevereiro de 1896, à data vigente, que estabelecia o processo sumário e as penas aplicáveis a quem, por qualquer meio, defendesse ou incitasse «actos subversivos», particularizando e agravando os casos animados pelas «doutrinas de anarchismo». A imprensa, por exemplo, era proibida de «occupar-se de factos ou de attentados de anarchismo», incluindo na sua fase investigatória ou processual. Em caso de infracção, a edição em causa sujeitava-se a ser apreendida, prevendo-se também a suspensão do periódico e a responsabilização criminal do autor do artigo, do editor do título e da própria tipografia onde era impresso. Neste quadro legal, não é pois de estranhar nem o curto tempo de vida destas publicações, nem o seu fim abrupto. Mas dele se depreende também o dinamismo que os movimentos libertários conheceram na época e o interesse que suscitaram, quer entre a intelectualidade, quer entre a população trabalhadora, sobretudo, o operariado, que principiava a organizar-se, a tomar consciência da sua força e a exigir a resolução da “questão social”.
Na sua acção de propaganda doutrinal n’ A Gafanha, Campos Lima parte, quase sempre, do concreto, isto é, de acontecimentos, factos políticos, sociais e até alguns fait divers. Comenta-os com tiradas jocosas, reveladoras da sua moral libertadora, mas não cultiva um discurso mobilizador, nem incita os leitores à acção, à luta. Na maior parte do tempo, Campos Lima coloca-se no papel do observador distante, atingido pela displicência: não poupa o exausto regime monárquico, mas a promessa da República não lhe inspira palavras mais generosas. As considerações que tece a respeito de uma possível união ibérica, firmada sobre o casamento de D. Manuel com uma filha de Afonso III, fica como amostra do tom corrosivamente descrente que impregna A Gafanha:
«Não convém ao concerto das nações, como se diz nas sebentas do perfumado Villela, o apparecimento d’uma nova potencia. E é assim provável que a união iberica não passe de um sonho… de reis encravados. Mas não se desconsole o sr. D. Manuel, se acaso perder o throno, fácil lhe será conseguir que o sr. dr. Bernardino Machado5 divida com Vossa Magestade, ás semanas, a presidência da republica.» (6)
Num registo de maior seriedade, destaca-se o plano para a reconstrução da vila de Benavente, destruída por acção do terramoto de 23 de Abril. Campos Lima dedica-lhe o n.º 5 d’ A Gafanha, idealizando a «communa de Benevente», com «casas pequenas, arejadas, elegantes»; possuindo uma «Escola completa», em vez de igreja; onde a actividade produtiva (rural e industrial) se desenvolveria em «officinas de produção», que canalizariam os seus produtos para «grandes depósitos» de consumo. Consciente do carácter utópico do seu plano, mormente por razões de ordem legal, Campos Lima defende uma solução de compromisso, um estádio preparatório, sob a égide do município, que entende como «uma espécie de socialismo: «Se é subversiva a doutrina da apropriação commum directa de tudo pela população, podia pelo menos fazer-se a municipalização, que é uma forma de apropriação commum por delegação». Embora possível e desejável, Campos Lima acabará por reconhecer que nada se fará porque «Se o terramoto abriu as casas e abalou as fortunas, não produziu uma radical transformação nas consciências.»
Merecem também o nosso sublinhado dois textos que reflectem sobre o fenómeno da comunicação social. Um, trata da “moda” recente de os conferencistas se fazerem pagar pelas suas dissertações, questionando as suas verdadeiras motivações. Campos Lima não tem peias em considerar que se trata de um comércio de ideias, onde impera a vacuidade e o artificialismo.
Assim, conclui, «essas conferencias não passarám de esquisitices de salão e os prelectores terám de substituir bem depressa o tom sentencioso e didáctico pelo gesto galante ou o esgar grotesco para gáudio do sr. espectador, que pagou o seu bilhete.» (8)
O outro é uma interessante caracterização da «opinião pública», em 1909 (sublinha-se): «quasi sempre irreflectida», «não passa da imagem rápida d’ uma noção transmittida por impressões momentâneas»; «Na estreiteza dos seus raciocínios, a opinião publica exige muito pouco para se pronunciar»; «Resulta assim injusta as mais das vezes, baralhando a verdade com a mentira, e infamando com suspeitas vis os que não teem outra maneira de se defenderem d’ella do que a de a chamarem á rasão das coisas; Que nunca a opinião publica, uma vez aferrada a uma ideia, se resigna a abandona-la, na teimosia perversa da sua inconciência.»(9)
A Gafanha era composta por 16 páginas, além da capa em papel de cor. O seu preço avulso era de 30 réis. Não incluía imagens, nem tão-pouco títulos: os textos são separados por datas (dia e mês), conferindo à publicação um aspecto intimista, próximo do diário ou das memórias. Graficamente e até no registo discursivo, ora irreverente, ora irónico, descobre-se umasemelhança com Os Gatos, de Fialho d’Almeida. Aliás, logo no primeiro número, no texto de apresentação d’ A Gafanha, Campos Lima evoca as penas cáusticas de Fialho d’ Almeida e de Ramalho Ortigão, lamentando o seu silêncio e sugerindo mesmo a sua corrupção: «Quando Ramalho morreu e quando morreu o Fialho, e sobretudo quando lhes vi o enterro, através da cidade, com os archeiros da casa real á frente, ladeado pela municipal, chorados ambos pela rainha, cantados em doiradas estrophes pelo poeta João Saraiva e elogiados do Brazil em artigos pomposos tarjados [sic] de negro, o que eu chorei não foram aquellas duas carcaças, já inúteis a caminho do monturo, mas o que depois d’essas paginas febris, d’um altíssimo e profundo sentimento, repassadas do espírito da nossa raça, não mais tornará a ser escrito.»(10)
Um dos interesses maiores d’ A Gafanha está, provavelmente, na oferta do testemunho de um libertário ortodoxo, num período marcado pela concertação de diferentes forças e sensibilidades políticas e ideológicas com o fim de derrubar a monarquia.
1 A partir dos assuntos que chama às páginas da publicação é possível deduzir uma periodicidade quinzenal, mas nem sempre cumprida com rigor.
2 Ver nótula biográfica no final.
3 Cf. [«Em que se dizem duas palavras de prologo»]. A Gafanha. Lisboa: Campos Lima. N.º 1,
1909, p. 3-6.
4 Na Hemeroteca Municipal de Lisboa existem apenas os dois primeiros números. Os restantes(3, 5, 6 e 8) foram consultados na Biblioteca Nacional de Portugal
5 Bernardino Machado é o principal alvo da veia satírica de Campos de Lima n’ A Gafanha. A sua eloquência atingirá os píncaros na apreciação que faz ao polémico quadro «”Sonho” –Venie ad me», de António Baeta Neves (1909), onde o presidente do Partido Republicano éretratado a cumprimentar Cristo. Terá sido encomendado por Francisco Grandella e esteveexposto numa montra dos seus célebres Armazéns. A imagem foi publicada em formato postale distribuída através da imprensa. Cf. [«Pede-se a intervenção do Dr. Bernardino Machadopara um caso urgente»]. A Gafanha. Lisboa: Campos Lima. N.º 8, 1909, p. 8-13.
6 Cf. [«Alvitra-se uma solução a um futuro rei desthronado»]. A Gafanha. Lisboa: Campos Lima.N.º 1, 1909, p. 7.
7 [«A destruição da villa de Benavente»]. A Gafanha. Lisboa: Campos Lima. N.º 5, 1909.
8 [«Conferentes por importação»]. A Gafanha. Lisboa: Campos Lima. N.º 2, 1909, p. 3-5.
9 [«A opinião publica»]. A Gafanha. Lisboa: Campos Lima. N.º 8, 1909, p. 3-8.
10 Fialho d’Almeida morrerá em 1911 (Cuba), e Ramalho Ortigão em 1915 (Lisboa).
NÓTULA BIOGRÁFICA
João Evangelista Campos Lima (1887?, Porto–1957, Lisboa) foi um dos mais entusiastas defensores das doutrinas libertárias em Portugal. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, tendo participado activamente na célebre greve académica de 1907, do que resultou a sua expulsão. Acabou por ser indultado e concluiu o curso nesse ano. Por essa altura, era já um colaborador regular da imprensa de orientação libertária e um orador reconhecido. Também foi proprietário e director de algumas publicações periódicas e da editora Spartacus, além de ter publicado alguns estudos sobre a história movimento operário e libertário em Portugal. Também fez tradução.
Obra
Publicações periódicas que fundou ou onde colaborou: O gigante (Braga, 1897, lit.); Ideal e Verdade (Braga, 1898; prop./dir.); Vanguarda (Lisboa, 1899-1911; libertário); O Mundo (Lisboa, 1900); Ave Azul (Viseu, 1900; literária); Bohémios (Porto, 1900); Mocidade (Lisboa, 1901); Revista Livre (Coimbra, 1902; anarquista; dir.), A Verdade (Coimbra, 1903; libertário; prop./dir.) Arte e Vida (Coimbra, 1904-6); A Vida (Porto, 1905; anarquista); País (1905-1921); Era Nova (Coimbra; 1906; prop./dir.); Nova Silva (Porto, 1907); O Protesto (Lisboa, 1908; anarquista); A Greve (Lisboa, 1908; sindicalista); A Boa Nova (Lisboa, 1908; prop./dir.); O Povo (1911-16); Terra Livre (Lisboa, 1913); Portugal (1917- 20); O Século; Pátria (1920); Imprensa de Lisboa (Lisboa; 1921; dir.); Diário de Notícias; Amanhã (Lisboa, 1922; libertário; dir.); Imprensa Livre (Lisboa; 1925; sindicalista; prop./dir); A Notícia (1928); Cultura (1929-31; prop./dir.); Diário da Noite (Lisboa, 1932-33); Gleba (1934-35); A Batalha (Lisboa, 1919-26; sindicalista); Civilização (Porto, 1928-37); Vida Contemporânea (Coimbra, 1934-36); O Diabo (1939; dir.).
Monografias: A monja. Braga: Minerva, 1898; Notas de um Hallucinado: prosas intimas. Braga: [s.n.], 1899; Nova Crença. Coimbra: Liv. Portugueza, 1901; Os meus dez dias em Paris. Coimbra: Typ. Democrática, 1906; A questão da Universidade: depoimento d'um estudante expulso. Lisboa: Liv. Clássica, 1907; O Rei.Lisboa: Liv. Gomes de Carvalho, 1908; O Regicida. Lisboa: Liv. Gomes de Carvalho, 1909; O Estado e a evolução do direito. Lisboa: Liv. Ailland e Bertrand; Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1914; O carácter jurídico da operação do recrutamento dos funcionários públicos. Lisboa: Liv. Ailland e Bertrand, 1914; O reino da Traulitânia: 25 dias de reacção monárquica no Porto. Porto: Renascença Portuguesa, 1919; O Amor e a Vida. Lisboa: Spartacus, 1924; A quebra. Lisboa: Spartacus, [s.d.]; A Ceia dos pobres: contraste à ceia dos cardeais. Lisboa: Spartacus, 1925; A revolução em Portugal. Lisboa: Spartacus, 1925; A teoria libertária ou o anarquismo. Lisboa: Spartacus, 1926; Gente devota: via dolorosa. Lisboa: Spartacus, 1927; O romance do amor: esboço de uma nova moral sexual. Lisboa: Spartacus, 1931; Movimento operário em Portugal. Porto: Afrontamento, 1972.
Bibliografia:
Grande enciclopédia portuguesa brasileira. Lisboa-Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, Lda., 1978.
LIMA, Campos - O Movimento Operário em Portugal. Porto: Afrontamento, 1972.
PEREIRA, José Pacheco – “Bibliografia sobre o movimento operário português desde a origem até 25 de Abril de 1974 (livros e artigos publicados de 1974 a 1980)”. Análise Social, 1981, vol. XVII (67-68).
PIRES, Daniel - Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX. Lisboa: Grifo, 1996.
SÁ, Victor de - Roteiro da Imprensa Operária e Sindical 1836-1986. Lisboa: Caminho, 1991. ISBN 972-21-0541-8.
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