Ciências Humanas e Sociais
A Fome no Mundo
Todos os dias, no Planeta, cerca de 100.000 pessoas morrem de fome e das consequências imediatas da fome. 826 milhões de pessoas estão, hoje em dia, crónica e gravemente subalimentadas; 34 milhões delas vivem nos países economicamente desenvolvidos do Norte;o maior número, 515 milhões, vive na Ásia, onde representa 24 % da população total. Mas se considerarmos a proporção das vítimas, é a África Subariana que paga o tributo mais pesado: 186 milhões de seres humanos vivem aí permanentemente mal alimentados, ou seja, 34% da população total da região.A maior parte deles sofre daquilo a que a FAO chama «fome extrema», situando-se em média a ração diária nas 300 calorias abaixo do regime de sobrevivência em condições suportáveis. Os países mais gravemente atingidos pela fome estão situados na África Subsariana (18 países), nas Caraíbas (Haiti) e na Ásia /Afeganistão, Bangladesh, Coreia do Norte e Mongólia.
Todos os 7 segundos, na Terra, uma criança abaixo dos 10 anos morre de fome.
Uma criança com carência de alimentos adequados em quantidade suficiente, desde o nascimento até aos 5 anos, sofrerá as sequelas do facto para o resto da vida. Por meio de terapias delicadas praticadas sob vigilância médica, consegue-se fazer recuperar uma existência normal a um adulto que tenha estado temporariamente subalimentado. Mas a uma criança de menos de 5 anos, é impossível. Privadas de alimentação, as células cerebrais sofreram danos irreparáveis. Reégis Debray chama a setas crianças «os crucificados à nascença».
A fome e a má nutrição crónica constituem uma maldição hereditária: todos os anos, dezenas de milhões gravemente subalimentados dão à luz dezenas de crianças irremediavelmente atingidas. Todas essas mães subalimentadas, e que, no entanto, dão à luz, lembram as mulheres malditas de Samuel Beckett, que «parem a cavalo num túmulo…»
A destruição de milhões de seres humanos pela fome efectua-se numa espécie de normalidade gelada, todos os dias, e num planeta a transbordar de riquezas.
No estádio alcançado pelos meios de produção agrícolas, a Terra poderia alimentar normalmente 12 milhões de seres humanos, ou seja, fornecer a cada indivíduo uma ração equivalente a 2.700 calorias por dia. Ora nós somos pouco mais do que uns 6 mil milhões de indivíduos sobre a Terra, e todos os anos 826 milhões sofrem de subalimentação crónica e mutilante.
A equação é simples: quem tem dinheiro, come e vive. Quem não tem, sofre, torna-se inválido e morre.
A fome persistente e a subalimentação crónica são criadas pela mão do homem. São devidas à ordem assassina do mundo. Todo aquele que morre de fome é vítima de uma assassínio.
Sobre estes biliões de pessoas, os senhores do capital globalizado exercem um direito de vida e de morte. Por meio das suas estratégias de investimento, das suas especulações monetárias, das alianças políticas que efectuam, decidem todos os dias quem tem direito a viver neste planeta e quem está condenado a morrer.
As suas armas são as fusões forçadas, as ofertas públicas de compra hostis, o estabelecimento de oligopólios, a destruição do adversário por meio do dumping ou das campanhas de calúnias ad hominem. O assassínio é mais raro, mas os senhores não hesitam em recorrer a ele, se necessário.
Mas assim que o sistema no seu todo, ou num dos seus segmentos essenciais, é ameaçado ou simplesmente contestado (…) os oligarcas e os seus mercenários constituem um bloco coeso. Movidos por uma vontade de poder, uma cupidez e uma embriaguez de comando sem limites, defendem então com unhas e dentes a privatização do mundo. Esta confere-lhes extravagantes privilégios, um sem -número de prebendas e de fortunas pessoais astronómicas. (…)
Walter Hollenweg, teólogo famoso da Universidade de Zurique, resume perfeitamente a situação: « A cupidez obsessiva e sem limites dos nossos ricos, aliada à corrupção praticada pelas elites dos países ditos em vias de desenvolvimento, constitui uma gigantesca conspiração criminosa…No mundo inteiro e todos os dias se reproduz o massacre dos inocentes de Belém».
A 25 de Junho de 1793, na Convenção de Paris,o padre Jacques Roux leu o seu Manifesto dos Enraivecidos. Nele se pedia que fosse efectuada uma revolução económica e social contra o comércio e a propriedade privada quando estes «consistem em fazer morrer de miséria e de inanidade os seus semelhantes».
Franz Kafka escreveu esta frase enigmática: «Longe, longe de ti desenrola-se a história mundial da tua alma.»
Eu sou o Outro, o Outro sou Eu. Ele é o espelho que permite ao Eu reconhecer-se. A sua destruição destrói a humanidade em mim. O sofrimento dele, mesmo que não me atinja, faz-me sofrer.
O predador é a figura central do mercado capitalista globalizado, a avidez é o seu motor. Ele acumula o dinheiro, destrói o Estado, devasta a natureza e os seres humanos, e apodrece pela corrupção os agentes de cujos serviços se assegura no seio dos povos que domina. Ele fomenta no Planeta paraísos fiscais reservados ao seu próprio uso. Mercenários devotados e eficazes servem a ordem dos predadores
(retirado de «Os Novos senhores do mundo e os seus opositores» de Jean Ziegler, ed. Terramar,2003, com tradução de Magda Bigotte de Figueiredo a partir das Éditions Fayard de 2002)
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