A FACE E O VERSO - ESTUDOS SOBRE O HOMOEROTISMO 2
Ciências Humanas e Sociais

A FACE E O VERSO - ESTUDOS SOBRE O HOMOEROTISMO 2



O desgaste de um conceito
Em "A Face e o Verso psicanalista amplia discussão sobre inconsistência da noção de homossexualidade
A tese naturalista da homossexualidade não se sustenta teoricamente e engendrou formas perversas de controle e exclusão social
BENILTON BEZERRA JR

Em 1992, Jurandir Freire Costa lançou "A Inocência e o Vício: Ensaios Sobre o Homoerotismo" (Relume-Dumará), um conjunto de ensaios organizados em torno da tese central de que a "homossexualidade masculina" foi uma criação do século 19. Analisando a obra literária de Gide, Proust, Wilde e os estudos acerca da história da sexualidade de autores como Foucault, Boswell e Veyne, Jurandir procurou demonstrar como o imaginário da literatura e a ciência novecentista haviam paulatinamente moldado a figura social, o tipo psicológico do homossexual, tal como nós (independentemente de nossas preferências sexuais) nos habituamos a ver.
Só depois desse formidável processo de engenharia subjetiva tornou-se "evidente" a existência de uma divisão dos humanos em duas classes essenciais quanto à "natureza" da sua sexualidade: heterossexuais e homossexuais. A força da construção pode ser medida pelo fato de que essa crença sempre foi partilhada pela maioria _tanto dos que condenavam as práticas homoeróticas como desvio, perversão ou vício, quanto daqueles que saíram em campo defendendo a sua inocência.
Para todos esses, a questão "o que é ser homossexual" sempre apareceu como relevante cientifica, ética e politicamente. Admitem de modo irrefletido a premissa dessa questão, ou seja, que há "algo" intrínseco a todas as experiências classificáveis como homossexuais, independente de variações culturais ou psicológicas e que uma vez adequadamente descrito pode revelar a essência ou o referente último da homossexualidade.
Jurandir entrou na contramão. Munido da teoria freudiana do sujeito e da teoria pragmática da linguagem, saiu abalroando essas premissas, sugerindo a substituição da "questão da homossexualidade" pela descrição das praticas linguístico-culturais responsáveis pelas classificações que encobrem e normatizam o polimorfismo que as práticas homoeróticas apresentam e uma análise de suas consequências políticas. A justificativa de seu esforço: a tese naturalista da homossexualidade não se sustenta teoricamente e, do ponto de vista histórico, engendrou formas perversas de controle e exclusão social que uma sociedade democrática e tolerante _horizonte de nossa ação_ deve superar.
Como era de supor, o livro suscitou muitas discussões e enfrentou críticas tanto de conservadores teóricos (por exemplo, psiquiatras biológicos reducionistas), quanto de uma boa parcela de progressistas políticos (por exemplo, militantes que defendem um fundamento natural para a identidade gay).
Com a publicação de "A Face e o Verso: Estudos Sobre o Homoerotismo 2", Jurandir volta ao tema e à controvérsia. Desta vez privilegia o estudo acerca do surgimento no século 18 da própria idéia de homossexualidade, a análise do processo de patologização a que foi submetida pela psiquiatria e a sexologia do século 19 e uma minuciosa discussão dos modos pelos quais a categoria foi integrada à teoria psicanalítica. A epígrafe do livro (uma frase de Stephen Jay Gould ) ilustra com elegância e precisão a tese central do autor: "A variação é o fenômeno primordial, a essência é um conceito provisório".
No começo do livro encontra-se uma discussão da noção de sujeito definido como rede linguística de crenças e desejos, que visa articular a teoria freudiana do sujeito como expressão da pluralidade identificatória e a teoria pragmática da linguagem. A argumentação antiessencialista deste primeiro capítulo prepara o caminho para o segundo, no qual se discute a identidade semântica do termo homossexual: trata-se de saber se e como é possível estabelecer um referente último, natural e trans-histórico que nos permitiria traduzir ou interpretar práticas, atitudes ou desejos como homossexuais.
Jurandir aposta que não: descreve o debate atual sobre o tema, que opõe "construtivistas" de um lado e "realistas-essencialistas" do outro, e procura _por meio de argumentos baseados em Quine e Davidson_ resolver a questão de outro modo. Do ponto de vista pragmático, os realistas acertam ao dizer que alguma identidade tem que ser suposta senão seria impossível comparar coisas como a pederastia grega e a homossexualidade moderna; mas essa identidade _e aqui têm razão os construtivistas_ não é natural, e sim construída como "identidade". É, portanto, histórica e depende do jogo de linguagem que permite fixar a identidade do evento homossexual como sinônimo de "disposição" para relação físicas e amorosas com pessoas do mesmo sexo.
A definição parece ser óbvia, auto-suficiente e prescindir de contextualização. Mas agora é Thomas Laqueur que permite a Jurandir ir adiante e descrever _no terceiro capítulo_ as próprias noções de "mesmo sexo" e "outro sexo" como construídas historicamente. Os estudos de Laqueur mostram como até o século 18, o pensamento ocidental, dominado pelo neoplatonismo, não foi capaz de representar a sexualidade humana como bipolar e originalmente dividida entre sexualidade masculina e feminina.
A concepção dominante era a do "one sex-model": "A mulher era entendida como sendo um homem invertido. O útero era o escroto feminino, os ovários eram os testículos, a vulva um prepúcio e a vagina era um pênis" (pág. 100). O modelo metafísico ideal do corpo humano, cujo ideal o homem representava (a mulher era um homem invertido e inferior), só será substituído pelo "two-sex model" a partir do século 18, e sobretudo 19, e por razões mais políticas que científicas: no mundo igualitário burguês era preciso reordenar os procedimentos de diferenciação que permitissem justificar a desigualdade a que eram sujeitas as mulheres. A mulher passa de "homem invertido" a inverso, oposto do homem. Para Laqueur, somente depois da criação dos homens e mulheres como opostos ("mesmo sexo" e "outro sexo") é que se tornam possíveis as categorias de lesbianismo e homossexualidade.
É a partir de então, afirma Jurandir comentando Foucault, que encontramos a face do sexo, com sua natureza, leis e desvios, e o seu verso, o dispositivo da sexualidade.
É para esse sexo que perde seus referentes metafísicos e se torna natureza, biologia, que se voltam psiquiatras e sexólogos da segunda metade do século 19 (capítulo quatro). Na virada do século, a figura do homossexual estava consolidada tanto no imaginário científico quanto cultural. Mais que isso ela estava inelutavelmente associada a desvio da natureza, degenerescência, parada do desenvolvimento, patologia, perversão. É contra esse pano de fundo que emerge a obra de Freud.
Para os psicanalistas, a melhor parte do livro talvez esteja no quinto capítulo. Nele Jurandir passa um pente fino na obra de Freud, procurando isolar e analisar as tentativas de sistematização da noção de homossexualidade que ele produziu ao longo de sua obra. Jurandir descreve cinco modelos, que embora apresentem um certo desenvolvimento ao longo de tempo, não são sequenciais: frequentemente numa mesma obra concepções distintas são apresentadas, há superposições, idas e vindas. A análise detalhada dos textos mostra como Freud muda o seu olhar sobre o tema, em função do constante remanejamento de sua teoria.
Assim, em 1905, Freud rompe com a associação entre homossexualidade e disposição constitucional, descrevendo-a como resíduo do polimorfismo sexual infantil. À época do estudo sobre Leonardo da Vinci entram em cena a noção de complexo de castração, eixo em torno do qual a homossexualidade passa a ser explicada como defesa contra a angústia de castração e como produto de identificação com a figura materna, e assim por diante. As modificações, recuos e avanços subsequentes vão associar homossexualidade e passividade, ligá-la à agressividade e à economia do masoquismo.
Ao longo dessas análises, Jurandir procura mostrar como Freud _até o fim de sua obra_ frequentemente oscilou. Quando falava como psicanalista, reconhecia nossa ilimitada capacidade de descrever aquilo que do ponto de vista sexual, carnal ou erótico pode nos distinguir ou assemelhar uns aos outros. Quando falava como cientista ou homem comum, tornava-se refém da perspectiva do "two-sex model", aceitando a prática linguística hegemônica e insistindo em afirmar a inexorabilidade das consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos. No primeiro caso era um teórico inventivo, criador de metáforas originais; no segundo, pagava tributo às metáforas literalizadas da tradição que o antecedia.
O último capítulo resenha a produção pós-freudiana sobre a homossexualidade. A conclusão é uma só: à exceção de alguns poucos (Ferenczi, Rank, Brill, Stoller, Lacan), os psicanalistas não conseguiram ir além do que Freud já havia dito. Boa parte do essencialismo, da naturalização e do "entulho imaginário do preconceito" existentes no início do século persistem ainda hoje na própria psicanálise. Para Jurandir, a noção de homossexualidade mostra-se inconsistente teoricamente e indesejável ética e politicamente. Melhor faríamos todos se a aposentássemos na teoria e na prática. O debate está reaberto.

BENILTON BEZERRA JR. é psicanalista e professor do programa de pós-graduação em saúde coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

Folha de São Paulo



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