A DÉCADA DE 1920 E AS ORIGENS DO BRASIL MODERNO
Ciências Humanas e Sociais

A DÉCADA DE 1920 E AS ORIGENS DO BRASIL MODERNO



A grande transição

Carlos Guilherme Mota

Nos últimos 30 anos, a palavra "transição" tem sido usada entre nós com liberalidade espantosa. Tanto que se correu o risco de esvaziar o conceito de sua densidade histórica. Primeiro, foram os debates reiterativos sobre a transição do feudalismo ao capitalismo; depois, foi a vez de cientistas políticos que, após tanto debaterem transições, chegaram afinal a Brasília graças à coligação previsível.
O fato é que grandes transições -como as revoluções- não ocorrem todos os dias. Na história do Brasil, foram poucas, a começar pela primeira, a da própria formação à época da Independência (1808-1840), quando no Brasil se construiu sua identidade enquanto nação. Outra transição, bastante conhecida e estudada, cobre a época da Abolição. E a terceira -sinal dos tempos, visível dada a atenção que a historiografia vem lhe consagrando- é a de que trata esta excelente coletânea, "A Década de 1920 e as Origens do Brasil Moderno".
O livro merece atenção no atual panorama historiográfico, marcado por modismos e orientação mercadológica discutível. Porque esses estudos possuem, entre vários méritos assinaláveis, o de ajudar a deslocar a ênfase das discussões sobre a primeira grande transição do século 20 no Brasil dos anos 30 para os anos 20, colocando em novas bases as reflexões e as pesquisas sobre a construção do que as organizadoras denominam de "modernidade brasileira". Já se conhecem estudos "antecipatórios" sobre esse período-chave; o mérito porém deste painel é oferecer uma visão de conjunto sobre aquele momento com razoável grau de coerência, respondendo à problemática levantada na introdução. O leitor pode concluir, após a leitura, que de fato as grandes transformações das décadas seguintes já estavam em curso nos anos 20.
O mérito principal dessa coletânea deriva, a meu ver, da própria maneira como foi concebida. Não se trata de um conjunto ziguezagueante de artigos, com a preocupação em alinhar-se com o "dernier cri" historiográfico, fenômeno que marca o pouco sóbrio tempo atual. Procurou-se antes localizar um campo específico da história -o da história econômica- para, a partir dele, tentar-se uma abordagem deveras interdisciplinar. Ou melhor, transdisciplinar.
Os autores parecem estar cientes de que muito se fala entre nós em produção interdisciplinar, porém raramente se definem os campos, os termos e os componentes, os métodos e as técnicas do trabalho. Resultado de um simpósio em que se buscaram todas as dimensões das "origens da modernidade brasileira", os pesquisadores percorreram a crise da República em busca de formas de renovação política, examinaram as vertentes do pensamento político em movimento, as frentes e conceitos de urbanização, de inovação tecnológica e também o perfil dos sistemas educacional e cultural. Note-se que, embora com foco em São Paulo, os estudos como que dialetizam a antiga questão nacional, tema clássico e permanente da nossa historiografia, procurando sempre o contexto maior em que ocorreram, como se verifica nos estudos de Lucia Lippi, João Quartim, Rui Granziera ou Wilson Cano. E são inovadores os estudos de Milton Lahuerta (que se inspira no pensamento de Sérgio Milliet, novo ponto de partida para se repensar hoje os anos 20) e de Marta Carvalho, sobre educação, política e o desencantamento com a República Velha.
O artigo de Nestor Goulart Reis -que vem produzindo revisões deveras críticas, inclusive no que tange às ideologizadas "raízes do Brasil"- revela novas dimensões e usos do conceito de "modernização conservadora". Nestor abre perspectivas para melhor compreensão de como os mesmos temas eram tratados simultaneamente pelos tradicionalistas e modernistas. O projeto político de Washington Luís, nota ele, envolvia uma perspectiva para o futuro, como também uma determinada posição em relação ao passado. Com efeito, a propaganda política oficial utilizava um "esquema de valorização do que na época passou a se caracterizar como bandeirismo".
Ao se estabelecer uma ligação entre um passado mítico e de energia ("Seja um bandeirante"), ação política e grande mobilidade pelo espaço nacional, desenhava-se o objetivo e o papel que a São Paulo deveria caber na construção da nação. Uma vez definido o projeto e sua estratégia, "esta foi elaborada culturalmente, para sua legitimação, o que implica uma definição prévia de um destino ou futuro". A nação se forja assim: "Os projetos de equipamento do território vão ser elaborados culturalmente, como uma forma de ideologia". Isso explica porque os museus, os tombamentos do que se considerava "patrimônio nacional" etc. serão decorrências e parte dessa estratégia em que se escondia nossa ínvia "modernidade". Um estudo que nos obriga hoje a pensar: individual ou institucionalmente, quem legitima o quê?
Estes estudos não desconhecem, antes valorizam adequadamente, o fundo onde tais fenômenos se ancoram, no campo da história econômica. Circunscrevem o auge e a crise da economia primário-exportadora, a formação de um novo mercado de trabalho, a industrialização e a urbanização com seus novos desafios e tecnologias, os impasses da política econômica etc. Mas têm a sensibilidade para buscar a historicidade desses fenômenos, e não o fazem tão somente considerando a presença de novos atores políticos, da classe operária, das classes médias e militares, como tem sido feito ocasionalmente. E aqui reside o elemento diferencial desta postura: como indicam as organizadoras, "é nas esferas das transformações mais cotidianas da vida material em sua relação com a produção social da cultura que procuramos trazer ao debate as contribuições de sociólogos e historiadores da cultura". Coisa que faltava em nossa historiografia.
Note-se, mais, que os participantes procuram colocar tudo em xeque, embora com o cuidado necessário, sem preocupação em "reinventar" tudo a partir de si próprios... Desde o exame de expressões como "Brasil moderno" até "revolução pelo alto" revisam-se aqui conceitos, dialogando com a historiografia existente e de olho no presente. Mas o interesse pelos anos 20 não derivou apenas de uma preocupação em acabar com a visão anacrônica de se entendê-los apenas como "uma ante-sala das transformações da década de 1930". Também certos impasses da atual crise de "modernidade" revolvida com o impacto tecnológico da Terceira Revolução Industrial estão na base do esforço de compreensão daquela primeira "modernidade", quando se viveu no Brasil um momento crítico, com a desorganização no sistema capitalista mundial. Crise que se aprofunda com o impacto das técnicas da Segunda Revolução Industrial, ampliando o sentimento de periferia, e de necessidade de descoberta de "nossas identidades" e "especificidades" (e até "regionalidades", diria), de discussão do papel do Estado.
Para o historiador das mentalidades, para além dessa tentativa de estudar em bases mais sólidas a famosa "via brasileira para a modernidade", as organizadoras do livro levantam a possibilidade de se indagar sobre os significados atribuídos à modernidade na década de 1920 pelos que viveram aquela história, "procurando compreendê-los à luz daquele presente": "Dessa maneira, deve-se buscar a singularidade da década de 1920 não apenas no seu futuro, como se os acontecimentos subsequentes estivessem predeterminados, mas a recuperação das indagações e das perplexidades daqueles que a viveram e que procuravam, como nós, equacionar as saídas da crise". Postura metodológica esclarecedora e despretensiosa, dir-se-ia clássica, por isso digna de citação como fecho.
Carlos Guilherme Mota é historiador, autor, entre outros, de "Idéia de Revolução no Brasil" (Ática).

Folha de São Paulo



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