Ciências Humanas e Sociais
A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII
Alpers, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. Tradução Antônio de Pádua Danesi, São Paulo, Edusp, 1999, 427 pp.
Claude G. Papavero
Mestranda do Departamento de Antropologia - USP
Fruto de longa investigação iniciada em 1975, a obra de Svetlana Alpers, publicada em 1983 pela University Press of Chicago, com título original de: The art of describing, apresenta uma visão fascinante da arte seiscentista produzida nas províncias unidas referidas pelo nome de Holanda, a mais rica dentre elas.
A autora desenvolve, com argumentação sólida e muitos documentos, uma análise que amadureceu durante anos de debates com alunos e colegas. Considera o brilho intenso da arte holandesa do século XVII pelo prisma dos aspectos descritivos que chamam a atenção dos observadores, afastando-se das interpretações emblemáticas usuais sobre a arte pictórica holandesa do período. Toma distância, também, em relação aos conceitos de História da arte formulados para explicar a arte do Renascimento italiano, construída, em tema e perspectiva, à medida do Homem.
A preocupação central de Alpers, pelo contrário, versa sobre o contexto de produção e de consumo de imagens para um mercado burguês e sobre as circunstâncias peculiares da cultura visual fundamentada em tradições que privilegiam a observação atenta do mundo natural. Não obstante a escassez de documentação textual explicitamente referente ao assunto, suas indagações dizem respeito àquilo que os holandeses pensavam da arte que produziam, colocando em foco, portanto, uma questão essencialmente local.
E de fato, Svetlana Alpers afirma e confirma, em diversos momentos da obra, o impacto da influência das idéias de Clifford Geertz1 sobre os rumos assumidos pela pesquisa iniciada em Harvard, como aluna do Professor Ernst Gombrich. Proclama, por exemplo, a inadequação de conceitos formulados a partir da arte italiana renascentista para explicar os parâmetros da arte setentrional européia. Haveria, demonstra a autora, uma diferença intrínseca de propósito entre uma arte voltada para a narração que encena textos consagrados emolduradas em painéis construídos em perspectiva e a arte setentrional européia, por ela estudada, caracterizada como visual mais do que textual, atenta sobretudo à observação do mundo a ser captado pelo olho e transcrito na superfície plana da imagem.
Para apresentar essa arte holandesa parte integrante de um sistema cultural, a autora propõe um itinerário visual "denso". Efetivamente, mesmo que pretenda desvendar apenas alguns aspectos específicos do universo pesquisado, Alpers estabelece uma rede de capítulos interligados convincentes pela construção dos significados. Ao leitor da obra está reservado um passeio surpreendente pelos meandros de um texto bem escrito, ao qual a tradução sóbria e refinada acrescenta valor, e de uma argumentação rica e coerente, ilustrada com numerosas representações pictóricas em branco e preto.
Textos escritos pelo erudito Constantijn Huygens constituem inicialmente um centro de interesse estratégico para a análise. Diz a autora: "Quando o lemos, o que nos impressiona é menos a estatura que a amplitude do homem. É uma amplitude que permite a Huygens abarcar e revelar em seus escritos muito do que estava em voga em seu mundo"2.
Verificamos, no primeiro capítulo da obra, que a preocupação com a natureza da imagem ocupou lugar de destaque na reflexão do estudioso. Constantijn Huygens, influenciado pelas idéias do filósofo inglês Francis Bacon, pretendeu incorporar o benefício de descobertas técnicas recentes à tradição pictórica holandesa., aprimorando questões delicadas de escala, relacionadas com avaliações de distância e tamanho na representação, de modo a permitir que, através das lentes experimentais do microscópio, do telescópio ou da câmara escura de Cornelis Drebbel, a beleza do mundo natural criado por Deus fosse melhor observada pelo artista em sua tarefa de ver, conhecer e pintar.
Em conseqüência, após um mergulho no contexto intelectual do pensamento de Huygens, a historiadora da arte torna a vincular, de forma mais ampla, representação pictórica e experimentação ótica na sociedade holandesa. O estudo seiscentista do modelo do olho por Kepler e o uso da câmara escura oferecem-lhe, então, indícios para captar o fascínio holandês por luzes e texturas reproduzidas em pinturas que testemunham mais do que dramatizam os eventos descritos.
"Com mão sincera e olho fiel": o ofício da representação, é o título do terceiro capítulo da obra de Svetlana Alpers. O papel cultural das imagens num mundo descoberto pela visão mais do que pela leitura, encontra-se em foco nessa argumentação que procura desvendar o sentido de inscrever com propósitos didáticos, e quase que taxonômicos, texturas e minúcias de objetos concretos, numa superfície pintada suscetível de ser possuída materialmente e mentalmente.
Assim sendo, as naturezas mortas exibem, com precisão microscópica, a superfície de queijos cortados ou de frutas descascadas e revelam uma "confiança extraordinária no olhar atento"3, aplicação prática holandesa da visão experimental de Francis Bacon.
A autora chama ainda nossa atenção para a valorização do conhecimento mapeado e para a congruência surpreendente entre pintura e cartografia. Recorre ao quadro: A arte de pintar de Vermeer para exemplificar o significado de produzir mapas, com fortíssima presença pictórica, para decorar as casas.
Aponta para a presença nessas superfícies cartografadas de superposições de técnicas de impressão ou de informações diversas inseridas que transformam os mapas em pinturas e as pinturas em mapas. Analisa o acréscimo, com arte e ciência, de estudos de flora, fauna e costumes estrangeiros ou de brasões, cártulas, alegorias, textos explicativos e retratos de cidades sobre a superfície dos mapas, tornando visível e acessível para o conhecimento registros de coisas distantes - O exemplo que examina é aquele da obra dos artistas de Maurício de Nassau produzida no Brasil Holandês.
Outro item que merece ainda a atenção de Svetlana Alpers é a voga das paisagens cartografadas panorâmicas. O perfil topográfico da Vista de Delft de Vermeer lhe permite detalhar a inserção de um novo gênero pictórico entre aqueles apreciados no período. A autora menciona o ímpeto holandês de descrever amplos espaços terrestres (sem preocupação de retratar propriedades fundiárias como na Inglaterra), com presença marcante do céu e efeitos de nuvens e luzes sobres horizontes baixos, espelhando a planura do território holandês.
Por fim, tendo enfatizado sistematicamente a preeminência da linguagem visual na arte holandesa, a autora sente-se obrigada a abordar a questão do lugar reservado às palavras e ao texto nessa arte. Analisa algumas modalidades de convívio entre arte pictórica e palavras. Assinala, por exemplo, a inserção de inscrições nas representações pictóricas, referida ao parentesco implícito entre imagens e escritas desenhadas.
A representação pictórica de leitores de cartas, também merece atenção cuidadosa, da estudiosa, ocasionando a elaboração de argumentação interessante. Pois, é o papel das palavras nas imagens que lhe serve de respaldo para evidenciar a heterogeneidade da arte holandesa. Cartas que são apenas objetos destinados aos olhos ou cartas que, pelo contrário, valorizam a palavra interior induzem a autora a diferenciar a arte de Vermeer daquela de Rembrandt que não obedece a parâmetros puramente descritivos.
As obras dos chamados pintores-históricos de Amsterdam também despertam o interesse de Alpers: "Que acontece nessa arte quando ela de fato apresenta narrativas?"4. Se é a obscuridade dos temas que prevalece, proveniente de leituras protestantes da Bíblia, a gesticulação sugerida, as conversas, as legendas ausentes, porém imaginadas, pressupõem a representação de textos antes descritivos do que narrativos, já que a expressão pictórica de sentimentos invisíveis pouco se manifesta no Norte.
Uma comparação entre elementos marcantes nas obras de Vermeer e de Rembrandt, os dois principais artistas da época, serve de epílogo à autora, completado por um rápido apêndice sobre a interpretação emblemática da arte holandesa.
A leitura da Arte de descrever afigura-se extremamente rica, comprovando quão proveitosa pode se tornar uma análise de História da Arte em área de fronteira com a Antropologia. Não são apenas as anedotas à margem da História que se beneficiam de um olhar implementado pela etnologia (Os grandes massacres de gatos). A visão do mundo de Constaijn Huygens também revela valores peculiares que iluminam nossa compreensão do século XVII com
Ressalvas eventuais à obra resenhada ficam por conta de ausência no texto. Ao selecionar de análise mais aprofundada capaz de conciliar ou de confrontar melhor as perspectivas da corrente da interpretação emblemática da arte holandesa com a perspectiva da arte descritiva holandesa aqui apresentada por Svetlana Alpers.
NOTAS
1 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC., 1989.
2 ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. trad. Antônio de Pádua Danesi, São Paulo, EDUSP, 1999, p. 47.
3 ALPERS, Svetlana. Obra citada, p. 167.
4 ALPERS, Svetlana. Obra citada, p. 375.
Revista de Antropologia
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