Ciências Humanas e Sociais
50 ANOS DE CIÊNCIA ECONÔMICA NO BRASIL - PENSAMENTO, INSTITUIÇÕES, DEPOIMENTOS
O Brasil dos economistas
09/Mai/98
Reginaldo C. Moraes
MARIA RITA LOUREIRO /ORGANIZADORA/; 50 ANOS DE CIÊNCIA ECONÔMICA NO BRASIL - PENSAMENTO, INSTITUIÇÕES, DEPOIMENTOS /LIVRO/; JOSEPH L. LOVE /AUTOR/; A CONSTRUÇÃO DO TERCEIRO MUNDO - TEORIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO /LIVRO/; RESENHA
eis dois livros indispensáveis ao leitor interessado nas formas pelas quais o Brasil foi interpretado pelos seus intelectuais. A coletânea organizada por M.R. Loureiro certamente atrairá aqueles que pretendem conhecer a trajetória do pensamento econômico no Brasil. Mas é também bastante útil para quem tenta entender o papel dos intelectuais nas instituições que estes criam e nas quais se criam. Como lembra Eleutério Prado, trata-se de uma coleção de materiais diversos, em origem, densidade e acabamento -"a síntese será feita pela história".
Dito isto, talvez pareça um pouco estranho o início desta resenha. Mas não vejo outra saída, já que a parte um (o item "pensamento" referido no título) tem ela mesma um começo desalentador. Não tenho aqui espaço para me alongar neste comentário, mas não desanime, leitor amigo, com o ensaio de Bresser Pereira, que pretende apresentar as "interpretações fundamentais" sobre a realidade brasileira -e acaba por fornecer listagens de nomes e obras com tentativas classificatórias no mínimo constrangedoras. Não desanime, leitor -repito. O restante do livro vale a pena, e muito. Ainda nesta primeira parte, um capítulo escrito por Ricardo Bielschowski resume seu importante estudo sobre o pensamento desenvolvimentista ("Pensamento Econômico Brasileiro", Ed. Contraponto). A eventual restrição que se poderia fazer, sem diminuir a validade do texto, é a de que se trata de reimpressão de artigo já antigo (1991), estando desatualizado em algumas referências. A seguir, Guido Mantega procura recompor os meandros do pensamento econômico brasileiro entre os anos 60 e 80, um mapeamento útil, ainda que forçado a conter, em 50 págs., esses 20 anos e muitos autores, que Mantega chama espirituosamente de rebeldes. Leda Paulani fecha a seção focalizando um episódio significativo da história "imediata" do pensamento econômico brasileiro: a teoria da inflação inercial. Concisa e claramente, resume a doutrina, pergunta pela sua filiação (ortodoxia, heterodoxia) e problematiza a idéia de que seja "uma criação teórica genuinamente nacional".
A segunda parte traz ensaios que examinam as instituições brasileiras de ensino e pesquisa em economia. A organizadora do livro volta ao instigante tema de seu livro recém-lançado ("Os Intelectuais no Governo", Fundação Getúlio Vargas) -em pequeno ensaio, examina como o Instituto Brasileiro de Economia (FGV), o Ipea (Ministério do Planejamento) e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (USP) vieram a constituir não apenas centros de ensino, mas também núcleos de preparação de quadros para ações de governo e de pesquisa voltada para a formulação de políticas.
Na terceira parte, a transcrição dos vivos debates ocorridos no seminário da USP intitulado "Cinquenta Anos de Ciência Econômica no Brasil" é seguida por um estudo de Ana Maria Bianchi, contextualizando e problematizando temas do evento. O volume finda com uma coleção de depoimentos de João Paulo dos Reis Velloso, Maria Conceição Tavares e Julian Chacel.
O segundo livro vem com a chancela do brazilianista Joseph Love, já bastante conhecido entre nós, sobretudo pelo seu estudo sobre o papel de São Paulo na economia e na política brasileiras.
Agora Love nos traz uma "história das idéias" -"história comparada" que pergunta "como o ritmo da absorção de instituições e idéias, bem como a reação a conjunturas econômicas, levaram não apenas à redescoberta ou à reinvenção de idéias (teorias, propostas, pressupostos explícitos ou implícitos, receituário de políticas) semelhantes, mas também à descoberta de novas idéias".
A comparação -aparentemente bizarra, reconhece o autor, no prefácio- faz-se entre o pensamento econômico corporativista e protecionista romeno (personificado em Mihail Manoilescu) e o estruturalismo cepalino, em especial o brasileiro, cuja estrela-guia é Celso Furtado.
A extensão do livro é mais do que justificada pela descrição cuidadosa dos eventos e pelo detalhe da documentação, que mostram, atrás do texto, os vários anos de pesquisa histórica que o tornaram possível. Embora não seja, declaradamente, a intenção do autor, o livro se permite alguns vôos lampejantes e sugestivos para posteriores desenvolvimentos. É uma das muitas e proveitosas formas de lê-lo, aliás.
Intrigado pela constatação de que, na década de 30, "Manoilescu fornecera aos industriais paulistas o que parecia ser um embasamento científico para a industrialização em um país predominantemente agrícola", Love pôs-se a estudar o meio intelectual em que o romeno escrevera e o meio em que repercutira, de um lado e outro do Atlântico.
A "ponte Manoilescu" revela sua existência imediatamente quando o autor examina seu forte impacto no Brasil, entre industriais, estadistas e intelectuais (Roberto Simonsen e provavelmente Vargas, entre os primeiros; Oliveira Vianna, Francisco Campos, Azevedo Amaral, tradutor de Manoilescu, entre os segundos). Mas os vínculos iriam mais longe no tempo e na profundidade. O pensador romeno encarnava e liderava todo um protesto contra a ortodoxia neoclássica e a ideologia liberal que a acompanhava. A partir daí, Love se viu perguntando "como o problema do atraso foi teorizado em dois países, em contextos geopolíticos diferentes". O estruturalismo cepalino surge então no horizonte desse estudo comparativo. E dá, assim, forma final ao ensaio.
Alguns terminarão a leitura e se darão por satisfeitos. Outros encontrarão ricas sugestões para estudos complementares. Para estes últimos, é um livro para ler com vagar, com o cuidado de anotar indicações, nem sempre sublinhadas pelo autor -talvez até algumas delas mais ou menos não-intencionais...
Ainda caberia uma palavra sobre duas ou três idéias furtivas lançadas na conclusão e no curto prefácio escrito para a edição brasileira.
O prefácio adianta que na conclusão o autor daria asas a especulações, ao perguntar, um tanto retoricamente, "se a intervenção estatal terá ou não saído de vez do cenário histórico". O leitor vai à conclusão e encontra esta afirmação: "Patente foi o fato de que caíram em desfavor, nas últimas duas décadas, as soluções estatais para os problemas do atraso econômico". Tudo diferente do período anterior, em que "o papel do Estado... aparecia... como a arena suprema do processo decisório e a propriedade estatal configurava-se como um novo pólo no conjunto de soluções para o problema do atraso".
O exame dessas doutrinas e de seu contexto pode nos sugerir muitas reflexões prospectivas. O surgimento e a audiência conquistadas por autores como Manoilescu e os cepalinos estão datados por limites muito precisos. Inserem-se no que poderíamos chamar de pequeno século 20, período demarcado pelo desmoronamento do padrão-ouro e pelas drásticas mudanças da política monetário-cambial norte-americana dos anos 70, seguidas, como se sabe, de uma avalanche desregulamentadora nos mercados financeiros mundiais. Nesse intervalo, a relativa diminuição do poder monitorador dos financistas, detentores de riqueza líquida, abre uma fresta no qual emergem e/ou transbordam políticas econômicas nacionalistas de vários tipos.
A pergunta do prefácio é então reescrita: "Terão as doutrinas examinadas neste livro não apenas um passado, mas também um futuro?". O autor sugere que sim. Mas volte o leitor ao curto prefácio e notará o quanto é, ao mesmo tempo, inocente e ferino: "Se um dos autores tratados neste livro, o atual presidente da República..., acredita agora que... o papel do Estado não é mais, como ele um dia imaginou, o de 'moldar o progresso', os artífices do Consenso de Washington pouco teriam a objetar". E a maldade talvez esteja aí: "Os historiadores talvez entendam melhor que os cientistas sociais o fato de que a história é cheia de surpresas". Leia e confira. Vale a pena.
Reginaldo C. Moraes é professor de ciência política na Universidade de Campinas e autor de "Celso Furtado, o Subdesenvolvimento e as Idéias da Cepal" (Ática).
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